Entre fantasias importadas e memórias de infância, o 31 de outubro vira termômetro da nossa identidade nas ruas brasileiras.
A data, agora no Calendário Oficial brasileiro, propõe valorizar o folclore e desafiar o monopólio do Halloween. O debate saiu das salas de aula e chegou às periferias, onde rodas de histórias e festas de rua disputam atenção com bailes e streams.
O que muda no 31 de outubro
O Dia do Saci, celebrado em 31 de outubro, entrou no calendário oficial em 2013 com um objetivo claro: dar visibilidade à cultura popular do País. A coincidência com o Halloween não é acidente. A proposta cria um contraponto local na mesma data em que as vitrines se pintam de abóboras.
O foco vai além de personagens. Ele abrange festas, danças, cantos, ofícios e modos de fazer. Congadas, reisados, bumba meu boi, boi-bumbá e festas juninas integram o conjunto. Saci, Curupira, Boitatá, Boto-cor-de-rosa, Iara, Mula sem Cabeça e lobisomem continuam a inspirar histórias, teatro, artes visuais e trilhas turísticas.
O 31/10 deixa de ser só fantasia gringa e vira convite para retomar referências que formam a cabeça – e o coração – do brasileiro.
Por que a data foi criada
A iniciativa surgiu para estimular eventos educativos e culturais nas escolas, nos bairros e nas praças. A comissão de educação e cultura do Congresso articulou a inclusão da data para fortalecer o repertório simbólico do País. O recado é direto: há espaço para celebrar sem apagar o que veio de casa, do terreiro, da roça e da beira de rio.
O folclore que a cidade tenta esquecer
A modernização mexeu no imaginário. Desde os anos 60 e 70, o Brasil trocou o campo pela cidade. A migração acelerada provocou desenraizamento. Famílias deixaram hábitos, histórias e rituais no caminho. Pesquisadores da USP lembram que, no Brasil agrário, as lendas ajudavam a explicar o mundo e a organizar a vida comunitária. Com urbanização, ciência e indústria cultural, novos medos e desejos ocuparam o centro do palco.
Quase 9 em cada 10 brasileiros vivem hoje em cidades, segundo o Censo 2022 do IBGE. O dado ajuda a entender por que figuras como o Curupira perderam espaço na fala do dia a dia. Isso não elimina as tradições. Ele empurra essas práticas para outros formatos e circuitos. Nas periferias, a juventude abraça o funk e o hip-hop, que também contam histórias. Ao mesmo tempo, rodas de capoeira, maracatus urbanos e grupos de boi reinventam repertórios dentro dos bairros.
As lendas não desaparecem. Elas mudam de endereço, de roupa e de público. A cidade exige novas chaves de leitura para velhas narrativas.
Exemplos que resistem
Há experiências que mostram vitalidade e capacidade de adaptação. Alguns destinos viraram referência e inspiram outras cidades.
| Local | Iniciativa | Quando | Para quem |
|---|---|---|---|
| Joanópolis (SP) | Roteiros do lobisomem | Fins de semana de outubro | Turistas e famílias |
| São Luiz do Paraitinga (SP) | Sociedade dos Observadores de Saci | Semana do 31/10 | Crianças e educadores |
| Morro do Querosene, Butantã (SP) | Bumba-meu-boi de rua | Festas comunitárias | Moradores e visitantes |
Quem participa e como participar
Você não precisa de orçamento alto nem de patrocínio. O primeiro passo é reconhecer quem já faz. Procure mestres, grupos culturais, bibliotecas do bairro e escolas. Combine a data com atividades simples, inclusivas e de baixo custo. A seguir, sete ideias práticas para sair do discurso e colocar o Saci na rua:
- Roda de histórias com avós, mestres e bibliotecários, com foco em personagens locais.
- Gincana do Saci: pistas sobre lendas espalhadas pela praça, com tarefas criativas.
- Oficina de brinquedos de meia, retalho e madeira, com reaproveitamento de materiais.
- Mostra de curtas e animações nacionais seguidas de conversa com educadores.
- Ritual de fogueira simbólica (segura e autorizada) para cantos e toques tradicionais.
- Feirinha de artesanato e comida de herança regional, com renda para produtores locais.
- Cortejo de rua com maracatu, congada ou boi, adaptado ao circuito do bairro.
Economia criativa e educação
O folclore alimenta a economia criativa. Festas, roteiros, livros, jogos, podcasts e figurinos geram renda para artesãos, músicos e contadores de histórias. Quem organiza eventos no 31/10 cria calendário próprio, atrai visitantes e movimenta comércio de bairro. Escolas ganham repertório para tratar de história, geografia, artes, ciências e meio ambiente com objetos concretos e narrativas vivas.
Pesquisadores da USP defendem um ponto-chave: o Dia do Saci não briga com o Halloween. Ele compartilha a data e amplia a conversa sobre pertencimento, diversidade e memória. A convivência abre espaço para comparar ritos, pensar diferença e criar pontes entre o que vem de fora e o que nasce aqui.
Halloween e Dia do Saci podem andar lado a lado. Um não precisa apagar o outro. A mistura é parte da nossa história.
Pistas para escolas e famílias
Quem trabalha com crianças pode ir além da fantasia. Traga mapas para localizar as origens das lendas. Relacione personagens às paisagens do Brasil: florestas, rios, cerrados, mangues. Use ciência para discutir conservação ambiental a partir do Curupira e do Boitatá. Promova rodas de cantoria com mestres de congada e boi. Proponha projetos de registro de memória: crianças entrevistam vizinhos sobre medos e assombrações do bairro.
O que está por trás do Saci
O Saci-Pererê resume a mistura brasileira. A figura mostra traços africanos, indígenas e europeus. Ele aparece como menino astuto, de uma perna só, com gorro vermelho e cachimbo. Atua como trickster: prega peças, bagunça a rotina e expõe erros de quem manda. Esse arquétipo, comum em várias culturas, serve para criticar hierarquias e ensinar com humor.
Quando a cidade adota o Saci, ela recupera um instrumento pedagógico poderoso. O personagem permite falar sobre racismo, classe, oralidade, infância e natureza sem panfleto. Ele provoca. Ele diverte. Ele ensina limites e responsabilidades por contraste.
Riscos, avanços e próximos passos
Há riscos. A caricatura publicitária pode pasteurizar símbolos e esvaziar sentidos. Representações racializadas exigem cuidado e protagonismo de coletivos negros e indígenas. O mercado não substitui o saber dos mestres. A solução passa por pactos locais: quem organiza precisa ouvir guardiões de tradição, remunerar apresentações e construir processos, não só eventos.
Há vantagens claras. A agenda do 31/10 oferece oportunidade para políticas culturais de base comunitária. Secretarias podem criar editais-bairro, apoiar cortejos, garantir transporte e som, e abrir equipamentos culturais para ensaios. Famílias se beneficiam com programação segura e afetiva. Crianças convivem com diferentes idades e aprendem a respeitar histórias que não cabem no streaming.
Para saber mais e agir hoje
Matriz cultural é a base de saberes que orienta valores, celebrações e modos de vida. O Brasil nasce do encontro – e do conflito – entre matrizes indígenas, africanas e europeias. O Dia do Saci convida a reconhecer essas camadas no cotidiano. Você pode começar mapeando, no próprio quarteirão, quem toca, quem dança, quem narra, quem confecciona. Monte um calendário simples com os vizinhos e combine encontros mensais até o próximo 31/10.
Se você trabalha com gestão, teste uma simulação de orçamento para um cortejo de três horas: cachês para dois grupos tradicionais, locação de som, oficina de brinquedo, acessibilidade e divulgação local. O custo costuma caber em emendas de bairro, verbas escolares ou patrocínios de microcomércios. A cada edição, documente com áudio, fotos e um livreto. Isso ajuda a mantê-lo vivo e amplia a memória coletiva.


