Armadilhas sonoras, cafezais e proteína animal se cruzam no Sul de Minas. Uma ideia ousada mexe com produtores e consumidores.
Um grupo do Instituto Federal do Sul de Minas estuda capturar cigarras que atacam raízes do café, reduzir o uso de inseticidas e transformar os insetos em uma farinha rica em nutrientes para nutrição animal. A proposta conta com apoio de uma grande cooperativa regional e já passa por ensaios em laboratório.
Por que as cigarras preocupam quem vive do café
As cigarras passam a maior parte da vida no solo. As ninfas sugam as raízes, drenam seiva, estressam as plantas e derrubam a produtividade. O prejuízo aparece em brotações fracas, queda de vigor e grãos menores. Quando os adultos emergem, a praga já causou estrago.
O período adulto dura cerca de 40 a 60 dias. Essa janela curta abre espaço para captura direcionada e quebra do ciclo.
Para o cafeicultor, o desafio combina manejo no campo e custo. Pulverizações químicas mostram efeito, mas deixam resíduos e pressionam o orçamento. A pressão social por práticas mais limpas cresceu, e soluções tecnológicas migraram do discurso para o experimento prático.
Como funciona a captura por som
O projeto testa armadilhas sonoras nas áreas de café, com apoio da Cooxupé. Os equipamentos reproduzem frequências que atraem os insetos adultos. Assim, reduzem a necessidade de aplicações químicas na fase de voo, momento em que os animais buscam parceiros.
Armadilhas operam com água e som. O objetivo é cortar pulverizações e diminuir resíduos no café.
Segundo pesquisadores, a atuação contínua ao longo da temporada ajuda a reter adultos e a frear a reinfestação. O foco recai no trecho mais vulnerável do ciclo: quando a cigarra sai do solo, canta, acasala e se torna mais fácil de localizar.
Da lavoura ao laboratório: a rota da cigarra
Depois de coletadas, as cigarras seguem para o laboratório de entomologia. A equipe desidrata os insetos, padroniza a moagem e obtém um pó fino. A amostra passa por análises para garantir composição, segurança e consistência do processo.
Análises iniciais indicam farinha com teor de proteína acima de 70%, com potencial para formulações de ração.
O estudante Washington José Martins integra o time que refina a caracterização. O grupo mapeia aminoácidos e verifica como essa matéria-prima pode entrar em dietas de peixes, aves ou suínos. O ajuste de granulometria, a remoção de umidade e a definição de embalagens fazem parte do protocolo.
O que muda para o produtor
Se a técnica avançar, o cafeicultor ganha duas frentes: uma ferramenta a mais no controle de pragas e a chance de dar destino útil ao que era descarte. O sistema reduz a dependência de agrotóxicos, mantém a lavoura ativa e cria insumo para cadeias vizinhas, como piscicultura ou avicultura.
- Menos pulverizações e menor risco de resíduos no café;
- Controle focado no período de maior vulnerabilidade da praga;
- Aproveitamento do inseto como ingrediente proteico para ração;
- Integração entre cooperativa, instituto e produtores locais.
Controle químico versus armadilha sonora
| Critério | Armadilha sonora | Controle químico |
|---|---|---|
| Resíduos no grão | Baixos | Possíveis |
| Foco no ciclo da praga | Adultos em voo | Ninfas e adultos, conforme produto |
| Exposição do trabalhador | Reduzida | Exige EPI e manejo rigoroso |
| Potencial de reaproveitamento | Transforma inseto em farinha | Não aproveita biomassa |
O que a ciência ainda precisa responder
O laboratório mede digestibilidade, perfil de aminoácidos e estabilidade de prateleira da farinha. A equipe também avalia presença de quitosana e outros componentes que podem beneficiar a saúde intestinal dos animais. Ensaios zootécnicos devem estimar ganho de peso, conversão alimentar e aceitação em diferentes espécies.
Há perguntas sobre escalabilidade. A janela de 40 a 60 dias para captura pede planejamento, logística de coleta e capacidade de processamento rápido. A cooperativa pode organizar rotas, mas a indústria precisa de volume mínimo para rodar. A definição de pontos de coleta e de protocolos sanitários evita contaminação cruzada.
Regra, segurança e aceitação de mercado
A transformação em ração demanda atendimento a normas sanitárias, rastreabilidade e registro junto às autoridades. O uso de insetos como ingrediente vem ganhando espaço em linhas de pet food e aquicultura. No Brasil, a destinação para alimentação animal segue critérios específicos de controle de qualidade. A adoção regional depende de guias técnicos, validação de lotes e auditorias de fábricas de ração.
A segurança do processo envolve desidratação adequada, controle de água livre, padronização térmica e testes microbiológicos. Esses passos inibem patógenos e estabilizam a farinha. A embalagem precisa barreira contra umidade e oxigênio para manter o teor proteico e evitar perdas.
Janela curta de captura, processamento rápido e rastreabilidade definem a viabilidade do modelo em escala.
Custos, riscos e oportunidades
O investimento em armadilhas sonoras inclui aquisição dos equipamentos e manutenção sazonal. Em contrapartida, a redução de químicos e a recuperação de vigor das plantas podem compensar. A transformação em ingrediente abre uma nova receita quando houver mercado comprador. Programas de compra por cooperativas podem reduzir a incerteza.
Riscos existem. Flutuações populacionais da praga afetam a oferta de biomassa. Sem escala, a farinha fica cara. A aceitação pelas fábricas de ração depende de padronização e lote mínimo. A formação de estoques exige estrutura de secagem, moinho e armazenamento com controle de umidade.
Como o leitor pode imaginar o impacto
Considere uma fazenda média no Sul de Minas: ao instalar armadilhas, o produtor concentra a captura no pico de voo, diminui pulverizações e entrega o material em um ponto de coleta da cooperativa. Em seguida, o laboratório processa, valida a proteína e vende o ingrediente a uma fábrica de ração local. O circuito encurta distâncias, cria valor e devolve resultado em forma de controle de praga e renda adicional.
O que vem a seguir
Os pesquisadores do IF Sul de Minas, com colaboração de cafeicultores e técnicos, conduzem novos testes para comprovar desempenho zootécnico e segurança da farinha ao longo do ano. A equipe também calibra armadilhas, define densidade por hectare e avalia como a estratégia se comporta em safras mais chuvosas ou mais secas.
O debate sobre insetos como fonte de proteína não se limita ao café. A experiência aproxima ciência e campo, abre espaço para manejo integrado de pragas e foca em soluções com menor carga química. Se a farinha de cigarra se firmar como ingrediente, o café pode se tornar exemplo de como transformar um problema do solo em proteína útil na dieta de animais.


