Uma técnica pensada para humanos começou a aparecer nas clínicas veterinárias e reacendeu a esperança de quem teme perder a visão do pet.
Em Itanhaém (SP), uma veterinária oftalmologista adaptou uma lente de contato humana para tratar uma lesão ocular grave em um Shih Tzu. O cão de cinco anos recuperou os reflexos e voltou a enxergar após um protocolo intensivo de cuidados e uso temporário da lente.
Caso que virou referência
A especialista Lais Belli atendeu o animal sem qualquer reflexo visual. O diagnóstico apontou uma lesão severa na córnea, provocada por um cílio ectópico — um pelo que nasce no local errado da pálpebra e raspa a superfície do olho. A cirurgia era a indicação padrão, mas o tutor não podia seguir com o procedimento e o cão tinha comorbidades. Para evitar o avanço do dano, a veterinária propôs uma alternativa: uma lente de contato terapêutica de uso humano, de silicone e sem grau.
Frente a um risco estimado de 95% de perda visual, a lente foi usada como último recurso para proteger a córnea e dar tempo de cicatrização.
O dispositivo foi colocado com auxílio de colírio anestésico. O tutor recebeu orientação clara: não havia garantia de que a visão voltaria. O objetivo era proteger a córnea da fricção da pálpebra, reduzir a dor e estabilizar o olho para que o tratamento clínico tivesse efeito.
O que é o cílio ectópico
O cílio ectópico é um folículo piloso que surge na margem interna da pálpebra, voltado para a córnea. O contato constante com o “pelinho fora do lugar” irrita a superfície ocular e pode abrir porta para úlceras e infecções.
- Sinais comuns: lacrimejamento persistente, piscadas em excesso, dor ao tocar próximo ao olho e sensibilidade à luz.
- Complicações possíveis: abrasões de córnea, úlceras, edema e perda temporária ou permanente de visão.
- Fatores de risco: olhos proeminentes e pálpebras mais curtas, frequentes em raças de focinho achatado.
Como a lente funcionou
A lente atuou como um “curativo transparente”. Ela serviu de barreira mecânica entre a córnea e a pálpebra, diminuiu a dor e sustentou as estruturas para estabilizar a superfície ocular. O cão voltou a apresentar reflexos após 10 dias de uso. Cinco dias depois, a lente foi retirada. O esquema incluía colírios em regime intensivo para controlar inflamação, dor e hidratar o olho. A cicatrização foi completa, sem sequelas estruturais observáveis.
A lente controlou a dor, protegeu a área lesionada e favoreceu a cicatrização do epitélio corneano durante todo o tratamento clínico.
Etapas do procedimento
- Avaliação oftalmológica completa, com teste de fluoresceína para mapear a lesão.
- Instilação de colírio anestésico e colocação de lente terapêutica gelatinosa.
- Prescrição de colírios lubrificantes e medicamentos conforme o quadro.
- Revisões frequentes para checar posicionamento da lente e a evolução da córnea.
- Retirada da lente após estabilização e epitelização adequadas.
Limites, riscos e quando usar
A estratégia não resolve cegueira irreversível. Funciona quando a perda visual decorre de lesão e inflamação, com chance de cicatrização do tecido responsável pela visão. Em casos de perfuração ocular, úlceras profundas ou danos permanentes, o manejo cirúrgico segue como opção de escolha.
- Riscos: infecção, deslocamento da lente, hipoxemia corneana e retenção de secreções se o acompanhamento falhar.
- Boas práticas: reavaliações regulares, higiene rigorosa e colar elizabetano para evitar coçar ou deslocar a lente.
- Alerta: automedicação atrasa o diagnóstico e pode agravar a lesão.
Não tente adaptar lentes em casa. Apenas o veterinário oftalmologista avalia a indicação, o modelo, o tamanho e o tempo de uso com segurança.
Lentes humanas x lentes veterinárias
Há lentes específicas para animais, mas o custo é mais alto. A versão para humanos, quando usada como lente terapêutica, pode ser uma alternativa acessível e disponível, desde que aplicada e acompanhada por profissional habilitado.
| Característica | Lente humana terapêutica | Lente veterinária |
|---|---|---|
| Material | Gelatinosa de silicone, sem grau ou com baixo grau | Gelatinosa, projetada para anatomia animal |
| Visibilidade para o médico | Transparente | Marcas ou círculos para facilitar a visualização |
| Custo relativo | Geralmente menor | Geralmente maior |
| Disponibilidade | Alta em óticas e estoques clínicos | Dependente de fornecedores especializados |
| Indicação | Casos selecionados, com avaliação e monitoramento próximos | Preferência quando disponível e viável ao tutor |
Como identificar problema ocular no seu pet
Lesões de córnea avançam rápido. A janela de sucesso aumenta quando o tutor busca ajuda logo nos primeiros sinais. Observe seu animal diariamente.
- Vermelhidão, dor ou olho semicerrado.
- Secreção amarela ou esverdeada.
- Manchas opacas, esbranquiçadas ou azuladas na superfície.
- Coceira insistente no rosto ou esfregar o olho nos móveis.
- Esbarros, medo de ambientes escuros e recusa em descer escadas.
Se notar piora ao longo de horas, trate como urgência. O dano corneano pode se aprofundar em curto prazo.
Cuidados práticos para reduzir riscos
- Higienize os olhos com solução indicada pelo veterinário, sem receitas caseiras.
- Mantenha os pelos ao redor dos olhos aparados, principalmente em raças de pelo longo.
- Use colar elizabetano quando houver irritação ou após procedimentos.
- Evite xampus e sprays na região ocular.
- Agende check-ups oftalmológicos em pets com histórico ocular.
O que este avanço representa
O desfecho positivo amplia o leque terapêutico em cenários com restrições clínicas ou financeiras. Não se trata de “substituir cirurgia”, e sim de oferecer um recurso de ponte quando a intervenção padrão não é possível naquele momento. Após o caso, a profissional passou a empregar a técnica em situações similares, com critérios rígidos de seleção e monitoramento.
Em paralelo, a oftalmologia veterinária vive um ciclo de inovação: bandagem de córnea com lentes terapêuticas, colas biológicas, tratamentos celulares e melhoria em colírios de alta lubrificação. O objetivo é acelerar a cicatrização e reduzir a dor, preservando a visão sempre que o tecido permite.
Informações complementares para o tutor
Lente terapêutica é diferente de lente “cosmética”. Ela serve como curativo, não corrige grau para o animal “enxergar melhor”. A indicação mais comum envolve abrasões e úlceras superficiais, ceratites e dores corneanas que pioram com o atrito palpebral. Em muitos casos, o médico combina a lente com antibiótico, anti-inflamatório e lubrificantes, além de controle da causa — como remoção de cílio ectópico quando viável.
Raças braquicefálicas, como Shih Tzu e Lhasa Apso, tendem a ter olhos mais expostos e maior chance de traumas de córnea. Programar check-ups, aparar pelos perioculares e agir rápido ao primeiro sinal de desconforto visual ajudam a reduzir sequelas. Em qualquer suspeita, procure um oftalmologista veterinário e converse sobre todas as alternativas disponíveis, inclusive usos off-label de lentes terapêuticas quando a avaliação indicar benefício.


