Entre plantões, corredores e lembranças teimosas, um jovem médico mineiro reencontrou a escrita e deu voz a vidas silenciadas.
Da pressão do vestibular à rotina de consultório, ele saiu do silêncio, voltou aos livros e fez da ficção um gesto de cuidado. O resultado trouxe debate, história e reconhecimento que alcança quem lê e quem é lido.
Da sala de aula ao consultório
Marcelo Henrique Silva, 32 anos, nasceu em Passos (MG) e cresceu com livros por perto. Formou-se em medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora e atuou como clínico no programa Mais Médicos em bairros populares de sua cidade. O atendimento a travestis e a pessoas que vivem com HIV moldou o olhar do profissional e reabriu a porta da literatura.
Em Belo Horizonte, onde trabalha como radiologista com foco em oncologia, ele passou a dividir o dia entre exames e parágrafos. A leitura de autores contemporâneos o empurrou de volta à escrita. A experiência cotidiana com pacientes vulnerabilizados forneceu repertório, ética e conflito para um romance que costura saúde coletiva, memória e afetos.
Do consultório para a página: a prática médica virou matéria literária e ferramenta para enxergar o que a pressa social costuma ignorar.
A faísca que acendeu Sangue Neon
Em 2019, uma homenagem à pernambucana Brenda Lee — referência no acolhimento de pessoas com HIV — despertou uma pesquisa que virou enredo. Sangue Neon, publicado em 2024, se passa entre os anos 1980 e 1990, atravessa a redemocratização e acompanha o surgimento da epidemia de HIV no Brasil, quando a Reforma Sanitária tirava do papel a ideia de um sistema público universal.
Personagens e referências
- Vera Lynn, personagem inspirada em Brenda Lee, simboliza cuidado radical e redes de proteção comunitária.
- Itamar, médico inspirado no sanitarista Paulo Roberto Teixeira, representa a resposta técnica aliada ao compromisso com direitos.
- Menções afetuosas a profissionais como Valéria Petri reforçam a memória de quem encarou o início da AIDS no país.
O título nasce de uma imagem de sobrevivência. O sangue, muitas vezes arma de estigma, aparece como escudo e afirmação de vida. A metáfora sustenta uma narrativa que não simplifica dor, mas encontra coragem e ternura nas brechas.
HIV, SUS e redemocratização: o romance usa a história recente como cenário para discutir pertencimento, cuidado e cidadania.
Da ideia ao reconhecimento
Sem editora, Marcelo inscreveu o original em um concurso para novos autores e adotou um pseudônimo para evitar ruídos. O manuscrito ganhou a seleção e chegou às livrarias em 2024. Em 2025, Sangue Neon levou o Prêmio Jabuti na categoria Escritor Estreante, em uma edição com mais de 4,5 mil obras inscritas.
| Ano | Marco |
|---|---|
| 2019 | Inspiração a partir da história de Brenda Lee |
| 2020–2021 | Redação do romance entre plantões e madrugadas |
| 2024 | Publicação comercial após vencer concurso de originais |
| 2025 | Jabuti de Escritor Estreante |
A vitória no Jabuti e o recado para os leitores
O prêmio funciona como um megafone. Ao reconhecer um livro que centra travestis, profissionais da saúde e usuários do SUS, a distinção amplia o debate sobre empatia, políticas públicas e memória coletiva. Marcelo relata alívio com o resultado, sentimento que nasce do compromisso com grupos acostumados a ficar fora dos holofotes.
Jabuti 2025, categoria Escritor Estreante: um selo que legitima uma narrativa sobre quem quase nunca é ouvido.
O troféu também indica apetite do público por histórias ancoradas em fatos. O avanço do SUS após a Constituição de 1988, a organização de movimentos sociais e o enfrentamento ao estigma em torno do HIV entram em cena sem didatismo. A literatura opera como ponte: aproxima o cotidiano da política e mostra como decisões públicas redefinem a vida privada.
Como a medicina se infiltra na ficção
O olhar clínico aparece na trama como método. Personagens observam sintomas, coletam indícios e compartilham decisões em equipe. O romance evita caricaturas, traduz jargões e deixa espaço para dúvidas, erros e retificações. Essa abordagem convida o leitor a acompanhar processos e não apenas resultados.
- Empatia como técnica: escuta ativa e linguagem acessível aproximam profissionais e pacientes.
- Ética do cuidado: não há corpo sem contexto social, laços e trabalho.
- Memória de políticas públicas: o SUS surge como conquista, não como cenário neutro.
O que o leitor encontra nas páginas
Há cenas de pronto atendimento, reuniões tensas, disputas por orçamento e momentos de descanso que salvam quem cuida. A prosa alterna rios de consciência com registros quase documentais, equilibrando ternura e conflito. O sentimento de comunidade move a narrativa e desafia a ideia de heroísmo individual.
O próximo capítulo: novas formas, mesmo impulso
Com a visibilidade do Jabuti, Marcelo estrutura um livro de contos e se arrisca em poesia e crônica. O médico trata a escrita como ginásio: treino constante, variação de forma e curiosidade sobre vozes. A rotina inclui blocos curtos no início da manhã e anotações soltas após o expediente, sem mitificar inspiração.
Escrever vira respiro: um espaço de cuidado para quem cuida e de atenção para quem raramente recebe atenção.
Quer começar a escrever? Caminhos possíveis
- Monte um arquivo de campo: anote cenas, falas e atmosferas que você testemunha.
- Defina um horário curto e fixo por dia; constância vence impulso.
- Troque leituras com um grupo pequeno; feedback objetivo acelera revisão.
- Pesquise editais e concursos; prazos ajudam a finalizar versões.
- Proteja personagens reais com mudanças de contexto, tempo e nomes.
Contexto que amplia a leitura
O Sistema Único de Saúde nasce da Reforma Sanitária e se consolida após 1988 com princípios de universalidade, integralidade e equidade. Na década de 1980, a emergência do HIV expõe desigualdades e mobiliza profissionais, movimentos de pessoas vivendo com HIV e lideranças comunitárias. Figuras como Brenda Lee organizaram casas de apoio, redes de assistência e campanhas contra o estigma em uma época de desinformação e medo.
Ao recuperar esse período, a narrativa ajuda a entender por que políticas públicas precisam de orçamento, pesquisa e participação social. O livro também mostra como linguagem salva ou fere: um termo mal usado afasta, uma escuta atenta aproxima. Essa dimensão pedagógica aparece orgânica, colada à vida das personagens.
Informações práticas para ampliar o tema
Leitores que atuam em saúde, educação e assistência social podem usar o romance em rodas de conversa. Uma proposta simples: selecione três capítulos que retratam atendimento, família e burocracia. Em seguida, convide o grupo a mapear barreiras e saídas concretas vividas pelos personagens. Compare com a realidade local e liste ações que cabem à equipe em 30, 60 e 90 dias.
Para quem se interessa pela história do cuidado no Brasil, vale acompanhar termos-chave que aparecem no pano de fundo da obra: Reforma Sanitária, controle social na saúde, prevenção combinada ao HIV e redução de danos. Essas expressões organizam debates práticos sobre financiamento, tecnologias de prevenção e acolhimento de populações historicamente excluídas.
Quem escreve ficção baseada em fatos pode testar um método simples: crie uma matriz com três colunas — evento histórico, personagem afetado, consequência íntima. Preencha com cenas curtas. O exercício ajuda a evitar panfleto, sustenta conflito narrativo e preserva nuances sem sacrificar a precisão do contexto.


