As luzes baixam no centro de São Paulo e a tragédia bate à porta com imagens que desafiam o torpor.
O Theatro Municipal de São Paulo acende o palco para Macbeth, de Verdi, com direção musical de Roberto Minczuk e estreia operística de Elisa Ohtake na direção cênica. A montagem atualiza a ferida aberta da peça de Shakespeare e mira aquilo que corrói: ganância, culpa e poder.
Uma estreia que mexe com Shakespeare e Verdi
A nova produção chega nesta sexta, dia 31, e convoca a Orquestra Sinfônica Municipal e o Coro Lírico Municipal para um mergulho dramático de grande fôlego. Macbeth foi a primeira incursão de Giuseppe Verdi em Shakespeare e marcou mudança decisiva em sua escrita. O compositor passou a desenhar personagens com mais sombras, pausas e contradições. Essa guinada aparece na partitura e pede cena que não se esconda do incômodo.
Estreia no Theatro Municipal de São Paulo, dia 31: Orquestra Sinfônica Municipal e Coro Lírico Municipal sob regência de Roberto Minczuk.
Ohtake chega à ópera com vocabulário de teatro contemporâneo. Ela integra cenário e direção como um organismo único e transporta a “hybris” trágica para signos visuais diretos. Nada de ilustração literal. O foco está no excesso, e no efeito que esse excesso produz no público de hoje.
A visão cênica de Elisa Ohtake
Sangue que não some e um castelo que oprime
A encenação opera no limite. Lady Macbeth não tenta apenas lavar as mãos; ela espalha manchas. As paredes absorvem e devolvem esse vermelho. A floresta das bruxas aparece como área desmatada, sinal de devastação. As estruturas do castelo pesam sobre os personagens como um teto que cai. O desenho de palco conversa com o estado mental do casal e com a brutalidade do poder.
Sangue nas superfícies, bosque desfigurado, teto opressor: a cena traduz a desmedida da ambição.
A proposta provoca estranhamento calculado. Em tempos de telas velozes e guerras sobrepostas, muita coisa passa sem bater. No teatro musical, códigos e rituais tornam cada ruptura mais visível. A diretora aposta nessa fricção para reativar a percepção do espectador.
Quem canta e quando
A temporada alterna dois elencos principais. A distribuição dá fôlego ao título e oferece leituras complementares dos papéis centrais.
- Lady Macbeth: Marigona Oerkezi ou Olga Maslova
- Macbeth: Craig Colclough ou Douglas Hahn
- Banquo: Savio Sperandio ou Andrey Mira
- Macduff: Giovanni Tristacci ou Enrique Bravo
Dois elencos, a mesma tensão
O papel de Lady Macbeth exige ataque vocal afiado e timbre que corte a orquestra com frieza calculada. Macbeth pede atormentação na palavra e gradações de força. Banquo traz nobreza escura. Macduff ilumina a plateia com uma ária de luto que fere sem gritar. A alternância de artistas pode mudar a temperatura da noite. O arco dramático permanece.
Por que esse Macbeth importa agora
O enredo nasce de uma sequência de decisões tomadas por medo e desejo. O casal elimina obstáculos e perde a si mesmo. A obra fala de poder que corrói instituições e intimidade. Fala de culpa que não se apaga. Em 2024, o tema encontra um público exposto à violência contínua e acostumado a rolar a tela. A ópera desacelera o olhar e devolve peso ao gesto.
Ganância, culpa e poder formam o eixo. A música expõe rachaduras que a imagem cotidiana costuma cobrir.
Verdi escreve para o coro como força coletiva. “Patria oppressa!” ressoa como lamento público. Lady Macbeth ganha páginas de magnetismo sombrio, como “La luce langue” e a cena do sonambulismo. Macbeth enfrenta o espelho diante do vazio, e Macduff sangra na ária “Ah, la paterna mano”. Cada número nasce de uma situação concreta. Nada sobra sem motivo.
O que você vai ouvir
| Obra | Compositor | Baseado em | Ano de estreia | Idioma | Ato |
|---|---|---|---|---|---|
| Macbeth | Giuseppe Verdi | Peça de William Shakespeare | 1847 (revisão em 1865) | Italiano | 4 |
A partitura alterna recitativos tensos, ariosos que moldam a palavra e grandes blocos corais. A orquestra sustenta o clima com timbres escuros de madeiras e metais que cortam seco. A percussão marca o passo do destino. O maestro Roberto Minczuk conduz a Orquestra Sinfônica Municipal, e o Coro Lírico Municipal assume papel central, quase personagem.
Como ler a encenação
Ohtake justapõe símbolos de devastação e excesso. O sangue fora de controle vira imagem de culpa sem fim. O bosque devastado aponta para o preço do progresso sem freio. As paredes que comprimem a cena sugerem que o poder conquista espaço roubando ar. A ausência de ilustração histórica reduz distrações. A plateia mira o ato cru e a reação do corpo diante dele.
Guia rápido para quem vai ao Municipal
- Planeje a noite inteira. Ópera em quatro atos pede atenção plena.
- Chegue com antecedência para ajustar a leitura do libreto do programa.
- Silencie o celular. A dinâmica de Macbeth depende de silêncio entre números.
- Evite perfumes fortes. O teatro respira junto e a concentração agradece.
- Aplauda após as árias e no final de cada ato. Evite interromper os recitativos.
Contexto que amplia a experiência
Macbeth tem duas versões consagradas. A de 1847, de Florença, traz orquestra mais direta. A revisão de 1865, feita para Paris, inclui ajustes dramáticos, nova escrita em trechos-chave e ballet. Cada casa escolhe um caminho de acordo com a proposta cênica e o perfil do elenco. Saber disso ajuda você a notar cortes e inserções sem estranhar.
Outro termo que vale guardar é “hybris”. A palavra grega define a desmedida que rompe limites humanos e ganha punição. Ohtake traduz essa ideia em formas físicas. O sangue que se espalha, o teto que desce, o bosque arrancado, tudo aponta para um mundo que perdeu o freio. Verdi, por sua vez, escreve música que respira com essa desmedida sem perder a medida do teatro. A tensão nasce daí.
Se você vai pela primeira vez, acompanhe o fio dos três eixos dramáticos: a ambição do casal, o peso da culpa e a resposta coletiva. Procure o momento em que a música “pesa” ou “clareia”, e relacione com a ação. Essa leitura simples rende uma audição mais nítida. E transforma a noite em algo que fica na pele, como as manchas que não saem das mãos de Lady Macbeth.


