Enquanto os remédios à base de GLP-1 viram febre no país, decisões discretas em Brasília podem alterar quem paga e quem recebe.
O debate sobre a “caneta emagrecedora” saiu das farmácias e entrou no coração da política pública. Um acordo entre Farmanguinhos/Fiocruz e a EMS promete tecnologia, produção local e pressa. O caminho escolhido levanta dúvidas sobre preço, rito e impacto no SUS.
Como foi a escolha e por que o preço acendeu alerta
A Farmanguinhos, unidade da Fiocruz, firmou em agosto um contrato de cinco anos com a EMS. O cronômetro começa a contar quando ocorrer o primeiro fornecimento ao Ministério da Saúde. Esse detalhe cria vínculo prático com a pasta, mesmo sem compra garantida neste momento.
A EMS venceu embora tenha recebido a pior nota em preço. A Biomm, única concorrente, levou 40 pontos no critério preço; a EMS, 20.
O placar final favoreceu a EMS por outro motivo. A empresa já havia solicitado registro na Anvisa para um dos medicamentos-alvo. Na época, o processo seguia em análise. Farmanguinhos e EMS não divulgaram valores.
O que dizem o ministério e os documentos oficiais
O Ministério da Saúde afirma que não participou do acordo Fiocruz–EMS. A pasta nega compromisso de aquisição de canetas e lembra que a Conitec rejeitou a incorporação no SUS em agosto.
O ministério descreve o acordo como uma plataforma nacional de peptídeos, com potencial para tratamentos oncológicos e vacinas, e não apenas para canetas emagrecedoras.
Apesar disso, o extrato no Diário Oficial menciona fornecimento ao Ministério como referência para o início do contrato. O desenho contratual, portanto, mistura desenvolvimento tecnológico com perspectiva de entrega ao sistema público.
As propostas barradas e o tabuleiro político
Outras duas ofertas não avançaram. A Fundação para o Remédio Popular (Furp), de São Paulo, com a brasileira Blanver, e a Iquego, de Goiás, associada à indiana Shilpa, entraram pelo rito tradicional das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs). Ambas acabaram rejeitadas e recorreram.
Segundo a Saúde, as propostas descumpriram requisitos básicos: presença de empresa que não integrava a parceria, e ausência de transferência do princípio ativo.
Os estados de São Paulo e Goiás são governados por potenciais adversários do Planalto. O ministério atribui as recusas a falhas técnicas, não a disputas partidárias.
Quadro comparativo das ofertas e do contrato
| Proponente | Parceiro privado | Rito | Preço (informado) | Pontuação em preço | Status regulatório | Situação |
|---|---|---|---|---|---|---|
| Fiocruz/Farmanguinhos | EMS | Parceria P,D&I (não PDP) | Não divulgado | 20 | Pedido na Anvisa solicitado | Contrato de 5 anos, com fornecimento como marco |
| Fiocruz/Farmanguinhos | Biomm | Seleção no mesmo edital | Não divulgado | 40 | Não informado | Não selecionada |
| Furp (SP) | Blanver | PDP | Não divulgado | — | — | Rejeitada; recurso em análise |
| Iquego (GO) | Shilpa Medicare | PDP | Não divulgado | — | — | Rejeitada; recurso em análise |
Do edital à virada de chave: por que a PDP ficou de lado
O edital original de Farmanguinhos mencionava PDP ou PDIL. Ao final, a fundação optou por um acordo genérico de pesquisa, desenvolvimento e inovação. Esse formato usa um decreto anterior e exige menos etapas que as PDPs. O Tribunal de Contas acompanha PDPs com lupa. A parceria de P,D&I corre por fora desse trilho.
Há precedentes em que Fiocruz firmou apenas acordos de cooperação técnica até a aprovação da PDP. No caso com a EMS, houve contrato. A Fiocruz afirma que pretende submeter a PDP na próxima chamada, e que a proposta escolhida seria a mais vantajosa para o Estado, mesmo com preço menos competitivo.
O que pode mudar para você e para o SUS
Sem incorporação pela Conitec, o SUS não distribui liraglutida ou semaglutida para obesidade. A produção local pode reduzir custos no futuro, mas isso depende de avaliação de custo-efetividade, orçamento e impacto em filas de atendimento. O contrato com marco de fornecimento sugere que a infraestrutura pública se prepara para um eventual cenário de compra rápida.
Conitec não incorporou o tratamento para a rede pública. Qualquer oferta no SUS precisa passar por nova avaliação, com preço e evidência clínica atualizados.
As canetas usam análogos de GLP-1. Esses fármacos reduzem apetite, melhoram controle glicêmico e, em alguns estudos, mostram benefícios cardiovasculares. Eles exigem acompanhamento médico e monitoramento de efeitos adversos, como náuseas, vômitos e risco de descontinuação.
Perguntas que pressionam a agenda pública
- Quanto custará a unidade produzida no Brasil e quem bancará a conta inicial de transferência tecnológica.
- Qual será a capacidade mensal de produção e como isso afetará a disponibilidade para o setor privado.
- Como o Ministério garantirá concorrência e preço de referência caso decida comprar para o SUS.
- Quando a proposta de PDP entrará em avaliação e se haverá nova disputa com outros laboratórios.
Medicamento, preço e política: as linhas que se cruzam
Na prática, o governo aposta em internalizar uma plataforma de peptídeos. Esse ativo tecnológico pode viabilizar fábricas para uma geração de medicamentos injetáveis. A estratégia mira autonomia produtiva e redução de dependência externa. O timing, porém, ocorre num ambiente eleitoral acalorado e com pressão social por acesso às canetas.
Se o SUS vier a custear o tratamento, o impacto orçamentário pode ser grande. A taxa de obesidade cresce, a demanda é alta e o uso tende a ser prolongado. A decisão da Conitec precisa mensurar custo por ano de vida ajustado por qualidade e comparar com alternativas como programas estruturados de atenção primária, nutrição e atividade física.
O que o paciente precisa saber agora
Para quem pensa em iniciar liraglutida ou semaglutida, a produção nacional não muda o acesso imediato pelo SUS. O tratamento segue disponível apenas no setor privado. Médicos orientam avaliação individual de risco e benefício. Pacientes com diabetes tipo 2 podem encontrar protocolos diferentes, já que indicações variam.
Famílias que planejam gasto mensal devem considerar variações de dose, ajustes clínicos e eventual indisponibilidade. A entrada de novos fabricantes costuma influenciar preço, mas só depois de aprovação regulatória e escala produtiva.
Próximos passos e pontos de atenção técnica
Fiocruz prevê levar a proposta de PDP à próxima chamada pública. A Anvisa segue com análises regulatórias. O Ministério da Saúde condiciona qualquer compra à decisão da Conitec. A disputa técnica pode evoluir com dados de efetividade no mundo real, inclusive sobre manutenção de perda de peso após suspensão do fármaco.
Se a plataforma de peptídeos se consolidar, Farmanguinhos pode produzir outras moléculas injetáveis. Esse movimento abre espaço para parcerias em oncologia e para vacinas de nova geração. A transição exige formação de pessoal, garantia de IFA nacional e validação de qualidade farmacêutica, etapa por etapa.


