No coração de Belo Horizonte, duas noites reuniram gerações em torno de canções conhecidas, novos arranjos e emoções discretas.
Em 2022, quando celebrou meio século de estrada, Lô Borges viveu um encontro raro com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. O repertório popular ganhou leitura sinfônica, a Sala Minas Gerais lotou por dois dias e a memória desse rito seguiu adiante em gravação ao vivo lançada no ano seguinte.
O chamado que mexeu com Lô
O projeto com a Filarmônica virou motivo de orgulho para Lô Borges aos 70 anos. Não foi um gesto protocolar. Tornou-se um capítulo de virada. O convite partiu de dentro da orquestra, com o contrabaixista e arranjador Neto Bellotto, que há anos estuda a obra do compositor. Ele ouviu, anotou, transcreveu e decifrou harmonias, baixos e inversões típicas do autor de Para Lennon e McCartney.
Bellotto liderou direção musical, arranjos e orquestração. Regência ficou a cargo do maestro associado José Soares. A montagem respeitou o DNA das canções e ampliou texturas. Nada de “orquestra de fundo”. Era parceria de igual para igual, com Lô ao violão, banda de apoio e a massa sonora dos naipes.
Concerto sinfônico com repertório 100% popular, 16 canções, duas sessões esgotadas e uma assinatura: arranjos escritos por quem conhece a obra por dentro.
16 canções, uma orquestra inteira
As apresentações ocorreram em dezembro de 2022, encerrando o calendário da Sala Minas Gerais. Foi a primeira vez que a Filarmônica montou um concerto de repertório exclusivamente popular dedicado a um único compositor. Ingressos se esgotaram com um mês de antecedência. O programa abriu com Um girassol da cor do seu cabelo, parceria com Márcio Borges, e seguiu por diferentes fases da carreira.
- Clássicos revisitados com cuidado rítmico, como O trem azul e Para Lennon e McCartney.
- Joias menos óbvias ganharam nova vida: O caçador, do “Disco do Tênis”, apareceu mais densa.
- Criações recentes surgiram com brilho orquestral: Dínamo (com Makely Ka) e Veleiro (com Patrícia Maês).
O equilíbrio de forças saltou aos ouvidos. Cordas sustentaram planos harmônicos e linhas de contracanto. Metais pontuaram ataques e respostas. Madeiras desenharam passagens melódicas que dialogavam com o violão de Lô. O resultado manteve o pulso mineiro e expandiu as cores do arranjo original.
Da Sala Minas Gerais ao registro ao vivo
Em 2023, a gravação do concerto chegou ao público em álbum pela Deck: 50 anos de música – Ao vivo na Sala Minas Gerais. O lançamento consolidou a leitura sinfônica e organizou, em sequência, diferentes espelhos da obra de Lô. Ouvir o disco ajuda a perceber a lógica musical dos arranjos e a costura de climas entre faixas.
O registro ao vivo apresenta dinâmica ampla: pianíssimos que respiram e clímax medidos, sem sufocar o balanço das canções.
Para quem conhece o Clube da Esquina, o álbum revela ângulos menos previsíveis. Para quem chega agora, funciona como porta de entrada para cinco décadas de composição mineira que se tornou referência para o país. As faixas que vieram da fase recente de Lô confirmam vigor criativo e diálogo com novos parceiros.
Depois do encontro, ecos em outras salas
A parceria com a Filarmônica não virou temporada fixa, mas gerou desdobramentos. Lô e o grupo de cordas DoContra levaram o mesmo repertório a São Paulo em 2023, com a Orquestra Brasil Jazz Sinfônica, em palcos como a Sala São Paulo e o Memorial da América Latina. A resposta do público manteve o padrão: salas cheias e audiência atenta à combinação de sofisticação harmônica e melodia direta.
Um vínculo que virou causa
O laço com a orquestra mineira seguiu além do palco. Em 11 de abril de 2024, quando o maestro Fabio Mechetti ergueu a bandeira “Uma sede não se cede” na Sala Minas Gerais, Lô estava na plateia. Ele marcou presença em defesa da instituição, então sob risco de desmonte. O gesto reforçou a leitura de que o concerto de 2022 também cravou posição pública: música popular e sinfônica compartilham o mesmo território cultural e pedem políticas estáveis.
Trajetória recente e parcerias que sustentaram o momento
O ano de 2022 foi generoso com Lô. Além do marco de 50 anos do Clube da Esquina e do “Disco do Tênis”, ele lançou Chama viva, com letras de Patrícia Maês e participações de Milton Nascimento, Beto Guedes e Paulinho Moska. O álbum atualizou o repertório e reaproximou gerações. A voz veio mais serena, as canções soaram concisas, e as colaborações reforçaram pontes criativas.
Nos bastidores, uma cena curiosa parecia traduzir esse estado de espírito. Entre cafés e barbearias da Savassi, ele ria de boatos sobre tinta no cabelo. Cabelos fartos, zero brancos, jeito de menino grande aos 70. A imagem fácil não encobria o foco no estúdio e no palco. O Lô brincalhão convivia com o artesão das harmonias tortas e dos refrães luminosos.
Por que esse concerto virou referência
Há motivos práticos. A curadoria montou um recorte amplo, mas preciso, sem diluir identidade. Os arranjos evitaram efeito “tapete”. Criaram camadas de diálogo com o violão e as vozes. O repertório se apoiou em pulsações conhecidas, abraçou surpresas e se abriu a quem nunca tinha visto Lô diante de uma orquestra.
Não era a orquestra acompanhando um artista. Era um organismo único, respirando junto, com lugar para síncope, silêncio e explosão medida.
| Data | Marco |
|---|---|
| jun/2022 | Preparação intensiva dos arranjos por Neto Bellotto com participação direta de Lô |
| dez/2022 | Duas noites esgotadas na Sala Minas Gerais com repertório 100% popular |
| 2023 | Lançamento do álbum ao vivo “50 anos de música – Ao vivo na Sala Minas Gerais” |
| 2023 | Apresentações em São Paulo com a Orquestra Brasil Jazz Sinfônica |
| abr/2024 | Lô apoia o movimento “Uma sede não se cede” em defesa da Filarmônica |
Como você pode ouvir melhor esses arranjos
Se você tem familiaridade com as versões de estúdio, vale comparar trechos específicos. Observe o papel das cordas nos refrães e a entrada dos metais nos interlúdios. Preste atenção às linhas do contrabaixo orquestral quando o violão marca a síncope. Perceba como madeiras costuram contracantos discretos que ampliam a sensação de espaço.
- Em Um girassol da cor do seu cabelo, repare na dinâmica em ondas e na fusão de vozes e cordas.
- Em O trem azul, note como a percussão dialoga com ataques dos metais sem quebrar o balanço.
- Em O caçador, escute o escurecimento harmônico das cordas graves e a luz que entra com as flautas.
Ganhos, riscos e caminhos para projetos sinfônicos-populares
Projetos desse tipo trazem ganhos claros: renovam o repertório, reaproximam público e orquestra e testam novas soluções de escrita. Há riscos calculados. O excesso de camadas pode ofuscar a batida original. A resposta vem do desenho dos arranjos e da escuta coletiva no palco. No caso de Lô, a solução manteve o pulso e abriu novas dimensões harmônicas.
Para quem trabalha com música, o modelo oferece aprendizados práticos. Arranjos partem do instrumento do compositor, respeitam tessituras e preservam o espaço da palavra. Ensaios precisam equilibrar precisão e flexibilidade. A experiência mostra que repertórios autorais, quando tratados com intimidade técnica, ganham potência ao cruzar com o sinfônico.
Contexto afetivo para os fãs que acompanharam a jornada
O ciclo de 2022 a 2024 consolidou um retrato de Lô Borges como autor atento ao presente e guardião de sua história. O concerto com a Filarmônica criou memória coletiva em Minas, trouxe novos ouvintes e reposicionou um repertório que atravessa gerações. Para quem esteve lá, virou marca pessoal. Para quem não foi, continua sendo convite aberto à escuta atenta, sem pressa e com curiosidade.


