Na Bela Vista, um endereço virou referência para recomeços silenciosos de jovens LGBT+. Agora, o relógio corre e tudo muda.
Após oito anos de trabalho, a Casa 1 anunciou o encerramento por falta de recursos. A decisão interrompe serviços que viraram apoio cotidiano para quem saiu de casa sem direito a retorno.
O que aconteceu
A organização, conhecida por acolher jovens LGBTQIA+ de 18 a 25 anos expulsos de casa, iniciou o processo de fechamento no fim de outubro. A equipe foi reduzida, novos acolhimentos pararam e o imóvel da residência deve ser devolvido em dezembro. Atualmente, 12 moradores precisam deixar o endereço. Parte deles são imigrantes que escaparam de países onde a população LGBT+ sofre criminalização.
A conta não fecha: custo mensal estimado em R$ 250 mil sem patrocínios e com doações em queda.
Fundada em 2017, a Casa 1 expandiu rápido. Além da moradia temporária, estruturou uma clínica social com acesso gratuito a cuidado em saúde mental e criou um centro cultural voltado a formação e convivência. A clínica registrava em média 2.000 atendimentos por mês, número que dá dimensão da lacuna aberta na rede de suporte da capital.
De onde vinha o dinheiro — e por que secou
O financiamento combinava doações da sociedade civil, parcerias com empresas e aportes estrangeiros. A partir de 2023, esse arranjo começou a desidratar. Marcas recuaram de ações de diversidade, contratos foram suspensos e negociações esfriaram. A entidade também relatou dificuldade em acessar recursos públicos por meio de convênios e emendas parlamentares.
Parcerias empresariais: 315 ações em 2023; 40 em 2024; neste ano, apenas 1.
Sem previsibilidade, um projeto de alta complexidade e custos fixos não sustenta folha, aluguel, alimentação e assistência especializada. Quando os aportes pontuais substituem receitas recorrentes, a operação vira refém de calendário de campanhas e de crises reputacionais que empurram marcas para fora do tema.
Indicadores do impacto
| Métrica | Valor |
|---|---|
| Atendimentos em saúde mental/mês | 2.000 |
| Moradores na residência | 12 |
| Custo mensal | R$ 250.000 |
| Ações com empresas (2023) | 315 |
| Ações com empresas (2024) | 40 |
| Ações com empresas (2025) | 1 |
O impacto imediato para quem dependia do serviço
O encerramento interrompe vagas de acolhimento e desmonta uma rotina de atendimento psicológico que ajudava pessoas em sofrimento psíquico, luto familiar e violências de gênero e orientação sexual. Interrompe também cursos e atividades formativas que funcionavam como ponte para emprego e renda.
- Interrupção de atendimentos para cerca de 2.000 pessoas ao mês.
- Fechamento de vagas de acolhimento a jovens expulsos de casa.
- Pressão extra sobre a rede pública de assistência social (CREAS, abrigos, CAPS).
- Risco de retorno à rua e aumento da vulnerabilidade a violência e trabalho precário.
- Perda de um espaço cultural que articulava pertencimento e repertório profissional.
Sem moradia e sem cuidado, a espiral de vulnerabilidade acelera: risco de rua, evasão escolar e adoecimento.
Quem construiu o projeto
A Casa 1 nasceu em 2017 com a liderança de Iran Giusti e uma rede de profissionais, voluntários e apoiadores. O foco era claro: acolher jovens expulsos de casa e articular suporte integral, do colchão à consulta de psicologia, passando por formação artística e qualificação. Ao longo dos anos, o endereço na Bela Vista virou referência para casos urgentes e políticas de diversidade de empresas.
Por que o recuo das marcas pesa tanto
As parcerias com empresas funcionavam como alavanca de sustentabilidade. Eram ações de patrocínio, projetos de conteúdo, contratações de oficinas e programas de voluntariado corporativo. O recuo recente mistura fatores: receio de “boicotes”, mudanças de orçamento, troca de prioridades e a visão de curto prazo em ações de diversidade.
Sem contratos plurianuais, quem trabalha com proteção social vive no fio da navalha.
Como o poder público pode responder
Governos podem estruturar editais com metas claras, repasses regulares e prestação de contas desburocratizada. Emendas impositivas multianuais e convênios de resultados ajudam a estabilizar operações complexas. Para a população atendida, a integração entre acolhimento, saúde mental e proteção contra violência precisa de fluxo de referência que funcione fora do papel.
O que você pode fazer agora
Sem links ou campanhas específicas, há caminhos práticos para diminuir danos imediatos e fortalecer a rede local.
- Ofereça doações recorrentes a coletivos e casas de acolhimento LGBT+ da sua cidade.
- Converse com o seu RH sobre retomar ou criar patrocínios plurianuais com metas de impacto.
- Disponibilize vagas de moradia temporária segura para jovens sem família de apoio.
- Acione o CREAS do seu bairro quando identificar pessoa LGBT+ em situação de rua.
- Pressione vereadores e deputados por emendas e políticas de médio prazo para acolhimento e saúde mental.
Se 5.000 pessoas doarem R$ 50 por mês, entram R$ 250 mil mensais — o suficiente para manter uma operação desse porte.
Informações úteis para ampliar o debate
Doação recorrente x pontual
A doação pontual ajuda em emergências. A recorrente garante previsibilidade. Quem opera acolhimento precisa assinar contratos, pagar equipe e manter estoque de alimentos e medicamentos. A recorrência ancora a folha e reduz o risco de paralisações.
Fundo patrimonial e contratos plurianuais
Entidades podem criar fundos patrimoniais (endowments) que rendem mensalmente, além de contratos de três a cinco anos com empresas e governos. Esses instrumentos exigem governança, auditoria e metas pactuadas, mas tiram o serviço do improviso.
Como a rede pública pode absorver a demanda
Quem perdeu vaga de acolhimento pode buscar o CREAS mais próximo, solicitar vaga em Centro de Acolhida e pedir prioridade por risco de violência. Para saúde mental, os CAPS e ambulatórios especializados fazem avaliação e encaminhamento. Em casos de ameaça, a Defensoria Pública e os serviços de direitos humanos do estado e da prefeitura atuam com medidas de proteção.
Riscos e caminhos para jovens LGBT+ sem apoio familiar
- Risco: abandono escolar e precarização do trabalho. Caminho: matrícula articulada com programas de renda e qualificação.
- Risco: violência e exploração. Caminho: acolhimento com sigilo de endereço e acompanhamento psicossocial.
- Risco: isolamento. Caminho: grupos terapêuticos e atividades culturais que criam rede de apoio.
Política pública funciona quando combina teto, cuidado, renda e pertencimento. Um desses pilares falha, todo o edifício balança.
A crise da Casa 1 expõe um dilema recorrente: a sociedade cobra resultados de projetos sociais, mas financia de modo intermitente. Para virar o jogo, empresas podem comprometer orçamentos de diversidade por ciclo plurianual, atrelados a indicadores de impacto; governos podem acelerar editais com repasse mensal; cidadãos podem assumir uma doação que caiba no bolso. Sem previsibilidade, cada avanço vira exceção. Com previsibilidade, vira política de cidade.
Para quem quer dimensionar a própria contribuição, uma conta simples ajuda: calcule 1% da renda mensal para doação recorrente. Em uma base de mil doadores, cada R$ 30 por mês movimenta R$ 30 mil. Com cinco mil doadores, R$ 50 por mês sustentam uma operação de R$ 250 mil. Pequenas parcelas, quando somadas, blindam serviços que salvam vidas.


