Em meio a dados que mexem com famílias, uma realidade silenciosa pede respostas rápidas de escolas, saúde e justiça.
O Censo 2022 do IBGE identificou em Campinas 96 meninas e meninos de 10 a 14 anos que declararam viver em união conjugal. O dado, apresentado como resultado amostral e ainda preliminar, acende um sinal para a rede de proteção local e volta a colocar no debate cultura, desigualdade e a aplicação da lei.
O que os números mostram
A contagem aponta um quadro específico e sensível: na amostra, 72 casos envolvem meninas e 24 envolvem meninos. O levantamento decorre de áreas de ponderação e serve para orientar políticas até a divulgação dos resultados definitivos.
| Faixa etária | Total em união | Meninas | Meninos |
|---|---|---|---|
| 10 a 14 anos | 96 | 72 | 24 |
Em Campinas, 96 crianças e adolescentes de 10 a 14 anos declararam viver em união conjugal, com forte predominância feminina.
Por se tratar de uma amostra, a informação não permite localizar endereços ou identificar famílias. Ainda assim, o número delimita onde as políticas públicas precisam agir: prevenção, proteção e acompanhamento.
Cultura, gênero e risco
Especialistas em demografia apontam fatores culturais como o pano de fundo de parte dessas uniões. Em alguns arranjos familiares, a gravidez de uma menina desencadeia a pressão por “formar casal”, mesmo sem formalização.
Uniões envolvendo meninas e parceiros mais velhos agravam riscos de violência, abandono escolar e dependência econômica.
A discrepância entre os sexos revela também a dimensão de gênero da prática. Meninas tendem a sofrer interrupções no estudo, a assumir tarefas domésticas cedo e a enfrentar relações desiguais de poder. Quando o parceiro é adulto, a vulnerabilidade se amplia e pode incluir coerção, controle da rotina e isolamento do círculo social.
Consequências visíveis na escola e na saúde
As escolas notam efeitos diretos: queda de frequência, evasão e queda no rendimento. Na saúde, cresce a procura por pré-natal precoce, cuidados de saúde sexual e reprodutiva e atendimento por equipes de estratégia de saúde da família. A rede precisa de fluxos claros para acolher, registrar e encaminhar.
O que diz a lei
O Brasil veda o casamento abaixo de 16 anos em qualquer hipótese (Lei 13.811/2019). Entre 16 e 18 anos, o casamento só ocorre com autorização de responsáveis. A faixa de 10 a 14 anos, portanto, não pode formalizar casamento, e qualquer convivência com conotação conjugal se enquadra como situação de risco.
Atos sexuais com menores de 14 anos configuram estupro de vulnerável, tipificado no Código Penal (art. 217-A).
Além da esfera criminal, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê proteção integral, com atuação do Conselho Tutelar, Ministério Público e Judiciário quando necessário. A prioridade é interromper o ciclo de violência e garantir estudo, saúde e convivência familiar segura.
Por que o Censo acende um alerta
Dados amostrais servem como radar. Eles não substituem investigações individuais, mas indicam onde a cidade deve concentrar esforços. Em Campinas, a informação sugere reforço imediato em ações de busca ativa escolar, prevenção à gravidez na adolescência, formação de profissionais e articulação de conselhos tutelares com saúde e assistência social.
Políticas que podem fazer diferença já
- Busca ativa e monitoramento da frequência escolar, com visitas domiciliares e apoio pedagógico.
- Ampliação do pré-natal na adolescência e acesso a métodos contraceptivos de longa duração.
- Capacitação de professores, agentes comunitários e equipes de CRAS/CREAS para identificar sinais de risco.
- Campanhas de informação sobre direitos e canais de denúncia, com linguagem voltada a famílias e jovens.
- Integração de dados entre educação, saúde e assistência para acionar a rede rapidamente.
Como agir na prática
Quem convive com uma criança de 10 a 14 anos em situação de união deve acionar a rede de proteção. O Conselho Tutelar orienta e faz os devidos encaminhamentos. O Disque 100 recebe denúncias de violações de direitos humanos. Em casos de violência contra a mulher, o 180 funciona 24 horas.
Procure o Conselho Tutelar do seu território e registre a situação. O atendimento é gratuito e sigiloso.
Escolas podem registrar a situação em ata, comunicar a direção e acionar o conselho de referência. Unidades básicas de saúde devem notificar casos de violência, garantir acolhimento e organizar o acompanhamento multiprofissional.
O que as famílias precisam saber
Uniões precoces não resolvem conflitos familiares. Elas tendem a ampliar a vulnerabilidade, interromper projetos de estudo e gerar dependência. A rede pública oferece suporte psicossocial, mediação familiar e acesso a benefícios sociais quando há critério. Programas com condicionalidades de frequência escolar, por exemplo, podem ajudar a manter o vínculo com a escola e reduzir riscos.
Sinais de alerta que pedem atenção
- Abandono ou queda brusca na frequência escolar.
- Circulação de um parceiro adulto controlando horários e contatos.
- Gravidez entre 10 e 14 anos.
- Isolamento de amigos e familiares, mudança de comportamento e medo de falar.
Entenda os limites do dado e como usá-lo bem
O número divulgado é preliminar e amostral, construído a partir de áreas de ponderação. Ele não aponta nomes nem endereços, mas oferece um mapa estatístico para decisões. Gestores podem combinar o indicador com registros de escola, saúde e assistência, e assim orientar equipes para os territórios que demandam maior atenção.
Uma boa prática é usar o dado do Censo para simular cenários de atendimento. Se 96 casos existem hoje na amostra, quantas visitas domiciliares as equipes conseguem realizar por semana? Quantas vagas em atendimento psicossocial a rede oferece? Responder a essas perguntas ajuda a dimensionar equipes e prazos de ação.
Perguntas que Campinas precisa encarar
- Como reduzir a pressão cultural por “formar casal” diante de uma gravidez precoce?
- Quais escolas e unidades de saúde precisam de reforço imediato em pessoal e capacitação?
- De que forma a cidade vai comunicar direitos de crianças e adolescentes sem estigmatizar famílias?
O debate passa por educação sexual baseada em evidências, fortalecimento do protagonismo de meninas e meninos e um pacto intersetorial que una escola, saúde, assistência, justiça e sociedade civil. O Censo trouxe um retrato incômodo, mas também uma oportunidade concreta de reorganizar serviços e proteger quem mais precisa.


