De um quintal na região de Campinas parte uma ideia simples que mexe com quem acorda ao som de passarinhos.
Um jardineiro decidiu transformar sobras de madeira em abrigo seguro para a vida que resiste entre muros e telhados. A vizinhança notou o canto aumentar. E resolveu participar.
Um jardineiro e mil casas
Paulo Roberto Bataglioli vive do cuidado com jardins há mais de duas décadas em Pedreira, no interior paulista. Em 2022, ele percebeu que os podas, as obras e a pressa da cidade deixavam menos cavidades naturais para as aves. Começou então a recolher sobras de madeira, bambu e ganchos sem uso. Da bancada improvisada nasceram as primeiras casinhas.
Desde 2022, Paulo instalou voluntariamente mais de 1.000 ninhos em casas, comércios e chácaras de Pedreira.
O gesto surgiu do dia a dia. Ao ver ninhos caídos após uma manutenção, ele recolhia os materiais e procurava devolver abrigo. Usou madeira reaproveitada, montou telhadinhos, abriu entradas com diâmetro pensado para espécies pequenas e fixou as caixas com ganchos metálicos que não ferem as árvores. Quando encontra peças antigas já gastas, ele reforma ou substitui.
Como nascem as casinhas
O processo é minucioso. A esposa ajuda no lixamento e na pintura com tintas à base d’água. As peças recebem furos de drenagem e respiro para não acumular calor. As entradas ficam protegidas do vento predominante e do sol da tarde. Cada conjunto sai único, colorido e discreto o suficiente para não chamar predadores.
As casinhas não têm preço: Paulo nunca cobrou pelos ninhos. A motivação é ver as aves nidificando em paz.
Uma rede que sustenta a ideia
O projeto só se mantém por causa dos vizinhos. Clientes e moradores doam tinta, madeira, parafusos e ferramentas usadas. Um marceneiro amigo produz comedouros em parceria; quando há custo, ele cobre apenas o material. A rede cresce com indicações. Um passa a notícia ao outro e aponta galhos firmes para a próxima instalação.
Pedaços de madeira, um pouco de tinta e vontade viram abrigo, sombra e canto nas ruas de Pedreira.
Quem já mora lá
Os ninhos ganharam inquilinos. Canário-da-terra e corruíra frequentam com constância. Também já apareceram bem-te-vi-rajado (Myiodynastes maculatus), suiriri (Tyrannus melancholicus) e maria-cavaleira-do-rabo-enferrujado (Myiarchus tyrannulus). O registro de espécies diferentes indica que a cidade oferece alimento, água e alguma tranquilidade.
- Canário-da-terra: usa cavidades pequenas e áreas com gramíneas e sementes.
- Corruíra: procura caixas compactas, com entrada estreita e proteção de chuva.
- Bem-te-vi-rajado: migratório, aparece em parques e bordas de mata no Sudeste.
- Suiriri: gosta de pontos altos e visão aberta para capturar insetos.
- Maria-cavaleira-do-rabo-enferrujado: busca cavidades medianas e ramos firmes.
Como você pode ajudar na sua rua
O cuidado com aves urbanas cabe no cotidiano de qualquer pessoa. Pequenos ajustes garantem segurança e reduzem problemas. Veja um guia rápido para incentivar a nidificação responsável.
- Local: instale a 2–4 metros do chão, em galho firme e com sombra parcial.
- Orientação: voltada para leste ou nordeste para evitar calor da tarde.
- Fixação: use abraçadeiras, arame plastificado ou ganchos. Não pregue no tronco.
- Higiene: limpe a caixa fora da temporada reprodutiva, usando escova seca.
- Proteção: adicione telhadinho com boa inclinação e furo de drenagem no fundo.
- Predadores: instale longe de muros estreitos e telhados acessíveis a gatos.
- Alimentação: se usar comedouros, ofereça frutos e sementes, nunca pão ou sal.
- Água: mantenha bebedouros rasos, limpos e à sombra, trocando a água diariamente.
Materiais que você tem em casa
- Madeira de reaproveitamento sem tratamento tóxico.
- Bambu com paredes grossas e cortes suaves nas bordas.
- Parafusos galvanizados e ganchos metálicos.
- Tintas atóxicas à base de água em tons claros.
- Tiras de borracha ou feltro para amortecer a fixação no galho.
Sem veneno, sem verniz tóxico e sem prego direto no tronco: a árvore agradece e as aves retornam.
Por que isso funciona
Muitas espécies urbanas precisam de cavidades para se reproduzir, mas não cavam seus próprios buracos. Elas dependem de ocos naturais, que ficam raros em ambientes muito podados. As caixas-ninho simulam essas cavidades e aumentam as chances de criar filhotes. A instalação correta reduz calor interno, infiltração e ataque de predadores.
O resultado aparece no som da vizinhança. Quando filhotes saem do ninho, os adultos vocalizam mais. A presença de insetívoros também ajuda no controle natural de pragas. Para quem cuida do jardim, passa a existir um indicador vivo de saúde ambiental.
Riscos e cuidados práticos
Qualquer intervenção na fauna pede atenção constante. Acompanhe as caixas sem abrir durante a incubação. Anote datas e observe à distância. Se surgir ocupação por espécies agressivas ou não desejadas, adote medidas preventivas na próxima temporada, como ajuste de diâmetro da entrada e escolha de local mais adequado.
- Calor excessivo: prefira tons claros e sombreamento natural.
- Chuva: garanta beiral frontal e vedação simples nas emendas.
- Formigas e cupins: retire a caixa para manutenção se notar infestação.
- Abelhas: não manuseie; sinalize a área e chame um manejo autorizado.
- Gatos: cole barreiras antiescalada no tronco abaixo do ponto de fixação.
- Temporada: evite mexer entre setembro e janeiro, quando muitos ninhos estão ativos.
O que Pedreira ensina para outras cidades
A experiência mostra que ações pequenas ganham escala quando a vizinhança participa. Doações de tinta, um pedaço de bambu e a disponibilidade de um ramo seguro já fazem diferença. Uma conta rápida ajuda a imaginar o alcance: se 100 moradores instalarem cinco ninhos cada, a cidade soma 500 abrigos em um único ano.
Quem deseja ampliar os resultados pode unir a instalação de ninhos ao plantio de árvores nativas que fornecem fruto e sombra. Ipês, pitangueiras e aroeiras criam micro-habitats e atraem insetos, base da dieta de muitas aves. Monitorar as espécies com anotações simples, em um caderno de campo ou em plataformas de ciência cidadã, ajuda a mapear períodos de reprodução e a ajustar o manejo local.
Quando a rua vira refúgio
Paulo costuma dizer que os passarinhos viraram companheiros de trabalho. Eles seguem o ritmo da roçagem e caçam insetos nos canteiros. Ao multiplicar casinhas, a cidade ganhou cantos ao amanhecer e mais olhos atentos para a natureza do bairro. A mensagem é direta: com ferramentas básicas e cuidado constante, qualquer morador transforma descarte em casa. E a casa, em nascimento.


