Entre treinos, consultas e metas pessoais, uma atacante do futebol brasileiro redesenha limites e inspira quem acompanha o esporte de perto.
Ketlen Wiggers, maior artilheira da história do Santos, manteve a rotina competitiva até o oitavo mês de gestação e ultrapassou a marca de 150 gols pelo clube. Com acompanhamento médico, planos de carga ajustados e conversas francas com a comissão técnica, a camisa 7 transformou uma fase de vida em um feito esportivo que mexe com torcedores e profissionais de saúde.
O caminho até o recorde com o bebê a caminho
A decisão de seguir treinando, e em certos momentos competindo, surgiu de um tripé: liberação clínica, adaptação de intensidade e segurança em campo. Ketlen reduziu impacto, monitorou sinais do corpo e reservou minutos de jogo para momentos-chave. Nada foi aleatório. Cada sessão foi planejada para manter o tônus e a coordenação sem colocar a gestação em risco.
Gestação ativa não é sinônimo de imprudência. Com avaliação individual e ajustes, o desempenho pode coexistir com a proteção da mãe e do bebê.
O Santos estruturou um protocolo especial: exames periódicos, controle de frequência cardíaca, sono e recuperação, além de comunicação direta entre obstetra, fisiologia e comissão técnica. Em dias de maior desconforto, a prioridade foi descanso. Em semanas mais leves, foco em técnico e posicionamento.
Como o departamento médico ajustou a rotina
- Treinos de força com cargas moderadas, privilegiando estabilidade de core e mobilidade.
- Minutagem controlada nos jogos, com substituições programadas e veto a divididas.
- Acompanhamento obstétrico quinzenal e monitoramento de sinais de alerta.
- Alimentação fracionada e hidratação reforçada, com protocolos térmicos em dias quentes.
O jogo que valeu a história
O gol que consolidou a nova marca veio de uma jogada que sintetiza a carreira da atacante: leitura rápida de espaço, deslocamento curto e finalização precisa. A vibração no banco e nas arquibancadas disse muito. Em vez de um sprint para a bandeira de escanteio, um abraço contido nas companheiras e mão na barriga, num gesto que virou imagem da rodada.
O recorde não foi só um número. Foi uma mensagem: a maternidade não cabe na caixa do “pare tudo”.
No vestiário, a repercussão foi imediata. A quebra de marca alimentou conversas sobre protocolos para gestantes no futebol, incentivo a licenças remuneradas e retorno assistido ao longo do pós-parto. Para um elenco repleto de jovens, ver a artilheira atravessar esse período com autonomia e suporte virou referência prática.
Direitos e regras: o que dizem Fifa, CBF e a realidade dos contratos
Desde 2021, a Fifa recomenda cláusulas de proteção à maternidade no futebol feminino, com garantia de licença mínima e estabilidade. No Brasil, competições femininas organizadas pela CBF vêm incorporando diretrizes para registro, afastamento e retorno, em diálogo com a legislação trabalhista.
Na prática, ainda há disparidade entre clubes. Projetos estruturados oferecem salário integral na licença, plano de saúde estendido ao bebê, creche conveniada e staff especializado em retorno pós-parto. Outros ainda caminham. Casos como o de Ketlen aceleram essa discussão, pois mostram que gestão, ciência e escuta podem conviver com a pressão por resultados.
| Fase | Foco do treino | Cuidados principais |
|---|---|---|
| 1º trimestre | Adaptação e manutenção de base | Controle de náuseas, intensidade moderada, sono |
| 2º trimestre | Técnico e força leve a moderada | Estabilidade do core, evitar impactos e calor excessivo |
| 3º trimestre | Coordenação, mobilidade, tático sem choque | Minutagem mínima, monitoramento obstétrico frequente |
O que dizem os especialistas sobre treinar grávida
Obstetras que atuam com atletas de alto rendimento concordam: gestação saudável e acompanhada permite prática de exercício ajustado. O risco maior está em impactos, desidratação, sobrecarga de temperatura e quedas. Preparadores físicos reforçam que a prescrição deve ser individual, com metas de percepção de esforço em vez de buscar recordes fisiológicos.
Sinal de alerta é sinal de pausa. Dor aguda, sangramento, tontura ou contrações exigem interrupção imediata e avaliação.
Fora de campo, o suporte emocional pesa. A atleta precisa de autonomia para dizer “hoje não” sem culpa e sem que isso seja lido como falta de compromisso. Em elencos competitivos, a cultura de proteção compartilhada ajuda a tirar a maternidade do terreno do tabu.
Mentoria dentro do elenco e o olhar das torcedoras
A presença de companheiras que já foram mães jogando facilita decisões. Troca-se sobre sutiãs de suporte, faixas abdominais, calçados, logística de viagens e até estratégias para lidar com enjoo em dias de partida. Nas arquibancadas, cresce a rede de mulheres que se reconhecem no percurso: trabalhar, gestar, cuidar e continuar apaixonadas pelo jogo.
Três lições que ficam para quem vive o futebol
- Planejamento é tão valioso quanto talento. Rotina com médicos e comissão técnica reduz incertezas.
- Contrato bem desenhado protege carreira e família. Cláusulas de licença e estabilidade evitam pressões indevidas.
- Comunicação aberta muda a cultura. Quando a equipe entende limites, o rendimento coletivo sobe.
O próximo capítulo: parto, licença e volta ao gramado
O período pós-parto será decisivo. A reconstrução da força do assoalho pélvico, a reorganização postural e o retorno gradativo ao contato pedem paciência. Em times com estrutura, a volta tende a começar por trabalhos indoor, seguida de campo sem oposição, jogos-treino e, por fim, competição.
Para quem acompanha a carreira da artilheira, a expectativa não é só por gols. É por um modelo de gestão que permita a uma jogadora ser mãe sem abrir mão de competir em alto nível. Esse é o legado que pode durar mais do que qualquer estatística registrada.
Informações úteis para atletas e clubes
Quem pensa em jogar durante parte da gestação pode simular um plano semanal com metas realistas: dois treinos técnicos de baixa intensidade, uma sessão de força com ênfase em estabilidade, mobilidade diária curta e avaliação clínica constante. Dias de calor exigem ajuste de carga e mais pausas para hidratação. Em viagens, o ideal é priorizar meias de compressão e alongamentos leves a cada duas horas.
Para clubes, investir em protocolos específicos cria vantagem competitiva. Programas de retorno com metas por etapas, parceria com obstetras esportivos e creche interna fidelizam talentos. Benefícios de maternidade custam menos que repor uma artilheira no mercado e elevam a imagem institucional. A história recente da maior goleadora do Santos mostra que quando o ambiente funciona, a vida não precisa esperar o apito final.


