Hora da onça no D.O.M.: você encararia 10 passos com jacaré, caviar e formiga por R$ 1.100 hoje?

Hora da onça no D.O.M.: você encararia 10 passos com jacaré, caviar e formiga por R$ 1.100 hoje?

Chapo — A mesa vira paisagem em movimento. Água e terra se tocam. O risco vira prazer. O Brasil cabe em dez passos pensados ao milímetro.

O D.O.M., de Alex Atala, lança uma degustação que provoca o paladar e a cabeça. A ideia parte de um ditado potente: quando a onça bebe água, não há como recuar. O roteiro passa por biomas brasileiros e usa louças de vidro que lembram correntezas, para sinalizar que sabores também escorrem entre margens.

O conceito por trás da onça

“Chegou a hora da onça beber água” dá nome e direção à experiência. O ditado aponta para o instante de exposição e coragem. Na cozinha, isso vira escolhas ousadas, ingredientes de origem rastreável e técnicas que sugerem rio, lama, pedra, mata.

O comensal é convidado a atravessar a fronteira entre água e terra. Textura, temperatura e memória guiam cada mordida.

As peças de vidro reforçam a narrativa. Bordas onduladas imitam o fluxo, reflexos lembram leitos turvos. O Brasil aparece em camadas: Amazônia, Pantanal, Cerrado, Caatinga e Mata Atlântica surgem na sequência de pratos, sem folclore fácil.

Da Amazônia ao Cerrado no prato

O percurso tem dez tempos. O primeiro gesto mede a tensão entre doçura e sal: doce de coco verde encontra o estalo do caviar beluga. Na etapa seguinte, caju em mosaico se junta a ostra, palmito e agrião. Uma granita crio-congelada fecha o jogo de temperaturas, como brisa fria que repousa sobre pedra morna.

Depois, chega um ravioli de crepioca recheado com ervilha-torta e ervas, banhado por tucupi espesso. O caldo lembra água de rio em dias de cheia, e a massa responde com crocância audível. A seguir, um purê de cará assado com alho se arruma em tela abstrata. No centro, ouriço. Espirulina azul e verde tinge o conjunto e chama as cores da bandeira.

O jacaré marca o meio da jornada. Predador anfíbio, ele resume a passagem entre margens e segura a mão de quem atravessa.

O corte de jacaré aparece imerso em seu próprio caldo, temperado por capim-santo. O bacuri, amazônico, amacia a curva do sabor com dulçor discreto. Na reta final dos salgados, surge um novilho com molho de café e espuma de leite. Uma farofa úmida de mandioca dá abraço de textura. O purê de mandioquinha com crocante de mandioca, perfumado com baunilha e tucupi preto, serve como ponte para os doces.

Os 10 passos, do mar à mata

Etapa Prato Ponto-chave
1 Caviar com doce de coco verde Doce-salgado em choque controlado
2 Mosaico de caju, ostra, palmito e agrião Granita crio-congelada e contraste térmico
3 Ravioli de crepioca com ervilha-torta e ervas Tucupi denso e crocância audível
4 Purê de cará com alho e ouriço Espirulina azul e verde, gesto pictórico
5 Jacaré com capim-santo e bacuri Servido no próprio caldo
6 Novilho com molho de café e espuma de leite Farofa úmida de mandioca
7 Purê de mandioquinha com crocante de mandioca Baunilha e tucupi preto como transição
8 Maria-mole de jabuticaba com mel e pólen Pétalas comestíveis
9 Espuma de chocolate, sorvete de louro e “pedras” de cupuaçu Referência ao encontro da água com a rocha
10 Petit-fours com formiga saúva dourada Bala de abacaxi, goiaba com nori, pão de mel, brigadeiro de milho

Harmonizações que fogem do óbvio

Luciano Freitas, o sommelier da casa, cruza rótulos nacionais e estrangeiros. O serviço começa com um espumante Extra Brut 2017 da Cave Geisse. Na sequência, um natural Undiú Pinot Gris 2024 da OutroVinho. O percurso segue com Viognier 2023 da Viña Progresso e uma magnum exclusiva do Peverella 2022 da Era Dos Ventos. O Gewurztraminer 2019 da Trimbach entra no diálogo aromático. Para a carne, Potter Tannat 2024 da Guatambu sustenta estrutura.

Entre o último salgado e os doces, aparece um aluá como acalanto. Freitas prepara a bebida fermentada com abacaxi, rapadura e gengibre. A sensação é leve e perfumada, sem álcool dominante.

Nas sobremesas, a casa opta por um vinho doce do Loire e por um Vin Santo toscano. Nada de Porto, por escolha consciente.

O caminho final adere a notas melosas e de frutas secas, que conversam com mel, pólen, louro e chocolate black da sobremesa principal.

Detalhes que mantêm a conversa viva

O décimo passo vira assunto. A formiga saúva, dourada, pousa sobre bala de goma de abacaxi com baunilha. O toque cítrico do capim-limão fecha o estalo aromático. No mesmo voo, aparecem um doce de goiaba com nori, um pão de mel recheado de banana com cumaru e uma flor de brigadeiro de milho com pequi cremoso em calda quebradiça.

Ao final, cada mesa recebe um livro com imagens de Marcelo Melo e Renato Soares. As fotos apresentam paisagens e texturas que dialogam com os pratos. O gesto amarra a narrativa: provar vira uma forma de reconhecer e proteger biodiversidade.

Serviço, preço e reservas

  • Endereço: Rua Barão de Capanema, 549, Jardins, São Paulo
  • Telefone: (11) 3088-0761
  • Horários: seg. a sex., 12h–15h e 19h–23h; sáb., 19h–23h; fechado aos domingos
  • Degustação: R$ 1.100 por pessoa; com harmonização, R$ 1.850 (+13% de serviço)
  • Perfil: experiência de 2h30 a 3h; número limitado de lugares

Para quem é essa experiência

Para quem se interessa por ingredientes brasileiros e aceita ousadia de texturas, a proposta entrega sentido pleno. Há riscos calculados: jacaré, ouriço, tucupi preto e formiga pedem curiosidade e mente aberta. A recompensa surge em camadas: memória afetiva, técnica contemporânea, impacto visual.

Pessoas com restrições devem avisar na reserva. O cardápio tem crustáceos, peixe cru, lácteos e insetos. A equipe costuma adaptar, dentro do possível. Temperos como cumaru, pequi e capim-santo possuem perfis aromáticos intensos. Crianças e gestantes precisam avaliar conforto com sabores e fermentações.

Glossário rápido para você não se perder

  • Tucupi preto: redução longa de tucupi, mais denso e tostado, usado como ponte entre sal e doce.
  • Bacuri: fruta amazônica de polpa macia e acidez doce, indicada para carnes brancas e caldos.
  • Aluá: fermentado tradicional do Nordeste, feito de abacaxi; versão da casa leva rapadura e gengibre.
  • Cumaru: semente aromática brasileira, com notas que lembram baunilha e fava tonka.
  • Saúva: formiga de sabor cítrico e mentolado; a crocância cria efeito de final alongado.
  • Peverella: uva branca histórica na Serra Gaúcha, que rende brancos secos de acidez firme.

Dicas práticas para aproveitar melhor

Vá com fome moderada e curiosidade alta. Faça pausas curtas entre as etapas para perceber mudanças de temperatura e som das texturas. Se preferir reduzir álcool, peça meia dose nas harmonizações. Quem não quer a formiga pode solicitar alternativa, sem perder a lógica do último ato.

O roteiro sinaliza um caminho possível para restaurantes brasileiros: valor de origem, cadeia justa e diálogo com biomas. Para quem gosta de cozinhar, vale testar combinações em casa, como coco verde com itens salinos ou um caldo de ervas mais espesso para abraçar massas leves. O foco está no gesto: construir pontes entre água e terra no próprio prato.

Leave a Comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *