Entre afetos, livros e telas, um debate reaparece com força: como educamos, censuramos e conversamos com as diferenças.
A escritora Martha Medeiros assume a patronagem da 71ª Feira do Livro de Porto Alegre e reacende uma discussão sensível. Ela aponta a infantilização do debate público, questiona a censura disfarçada de proteção e defende a leitura como prática de empatia. Aos 64 anos e com quatro décadas de carreira, Martha reivindica mais voz para as mulheres e menos tutela sobre leitores e crianças.
Patrona aos 64 e 40 anos de estrada
O convite chegou no ano em que ela completa 40 anos do primeiro livro, Strip-Tease. O simbolismo pesa. O posto também marca a história de uma autora que vem de colunas semanais e mais de 30 títulos publicados. Ela se torna a nona patrona mulher da Feira do Livro, sinal de um circuito que começa a corrigir atrasos e a reconhecer a presença feminina na cadeia editorial.
Da feira que formou leitora à autora celebrada
Adolescente, Martha cruzava a pé o Centro de Porto Alegre para garimpar livros com a mesada contada. A feira era ritual. A experiência virou trajetória. Vieram as sessões de autógrafos e o encontro com leitores. O evento, para ela, continua sendo um termômetro do que o público busca e do que o mercado publica.
A leitura amplia repertórios, aproxima realidades distantes e afasta preconceitos. Em tempos acelerados, essa pausa muda comportamentos.
O diagnóstico de Martha: infantilização e censura
Martha nomeia uma fadiga coletiva. Na rotina, tudo virou “não pode”. Conteúdos são barrados antes mesmo do debate. A autora enxerga nisso um empobrecimento da conversa social e um retorno a tutelas que tratam adultos como crianças.
Tudo vira “não pode”: onde estamos errando
- Conversas públicas mais reativas do que reflexivas.
- Medo de errar que paralisa a criatividade e a curiosidade.
- Conteúdos julgados por trechos, sem contexto.
- Infância superprotegida que reduz autonomia e interpretação.
Censura travestida de proteção
Escolas e bibliotecas enfrentam pressões sobre acervos, inclusive obras infantis. O argumento costuma apelar à proteção da criança. O efeito é o oposto: estudantes perdem contato com temas complexos mediados por professores e por livros de qualidade. A autora associa parte desse movimento a reações políticas que buscam preservar privilégios.
Toda tentativa de silenciar livros empobrece a sala de aula e atinge leitores que mais precisam de mediação e diversidade.
Leitura como antídoto
Para Martha, a leitura cria conexões afetivas e cognitivas. O leitor exercita a atenção, amplia vocabulário e acessa experiências que não vivencia no cotidiano. Esse mergulho reduz a vontade de apontar dedos e aumenta a disposição para ouvir.
| Efeito | Exemplos práticos |
|---|---|
| Empatia | Romances que apresentam imigração, fome, prisão e periferias com nuances. |
| Autoconhecimento | Crônicas que nomeiam sentimentos difusos e aliviam ansiedades cotidianas. |
| Pensamento crítico | Comparação de narrativas e checagem de fontes diante de notícias fragmentadas. |
| Disciplina | Rotina de leitura curta diária que cria foco em ambientes hiperestimulados. |
Da publicidade à página em branco
A autora começou em agências, escrevendo para vender produtos. A voz literária surgiu em diários, virou poesia e migrou para a crônica. O jornal lhe deu cadência e compromisso com o texto. Anos depois, a ficção entrou no horizonte como desafio técnico. Ela quer escrever melhor e arriscar mais.
Crônica é ofício, poesia é desejo
Martha organiza a semana para produzir. O domingo silencioso favorece a crônica. A poesia pede respiro emocional. Quando o trabalho jornalístico exige constância, a lírica estaciona. Essa alternância mantém a escrita viva e dialoga com leitores que buscam identificação imediata.
Mulheres no centro da página
O mercado editorial brasileiro tem mais autoras publicando e vendendo. Martha vê o movimento como um acerto histórico. Mulheres deixam de ser personagens escritas por homens e assumem a narrativa. O impacto aparece em enredos menos estereotipados e em personagens com desejo, falhas e agência.
O que ler: quatro autoras gaúchas indicadas
- A Mulher de Dois Esqueletos, de Julia Dantas.
- Dias de se Fazer Silêncio, de Camila Maccari.
- Da Sempre Tua, de Claudia Tajes e Diana Corso.
- O Pássaro e a Faca, de Daniele Kipper.
Redes sociais e fadiga digital
A exposição constante virou vitrine para eventos e lançamentos. Também roubou tempo de leitura e de ócio. O consumo fragmentado esfarela a compreensão. O retorno do vinil, da polaroide e dos álbuns impressos aponta um desejo de presença e memória.
Quando guardamos tudo no celular, perdemos a sensação de posse do passado. Objetos analógicos ancoram lembranças.
Vida adulta real: cuidado, tempo e negociação
A etapa atual inclui o cuidado com os pais, a organização da rotina e a disposição para renegociar prioridades. O envelhecimento dos responsáveis muda a agenda de quem cuida. A literatura, nesse contexto, vira companheira de fôlego e ferramenta de acolhimento.
Como ler mais em uma casa conectada
- Crie janelas curtas: 20 a 30 minutos por dia longe do celular.
- Deixe o livro na mochila ou na mesa da sala para leituras de trânsito.
- Alterne gêneros: uma crônica leve entre capítulos de um romance denso.
- Pratique leitura em voz alta com crianças, sem cortar temas difíceis; faça mediação.
- Desligue notificações em horários combinados com a família.
Para quem vai à 71ª feira
Busque sessões de autógrafos e conversas com autores iniciantes. Esses encontros criam vínculos e estimulam novas vozes. Procure estandes com curadoria de editoras locais. O catálogo regional traz temas do cotidiano gaúcho e amplia o repertório. Vale acompanhar a programação de bate-papos e ouvir o podcast oficial do evento para capturar bastidores.
Informações complementares para ampliar o debate
Termo para acompanhar: infantilização. Ele descreve o tratamento de adultos como incapazes de lidar com complexidade. Sinais aparecem quando autoridades e famílias evitam conflito de ideias, retiram livros de circulação e terceirizam decisões para algoritmos. O antídoto combina mediação de leitura, educação para a cidadania e responsabilidade compartilhada entre escola e casa.
Exercício prático para escolas e famílias: escolha um tema sensível, como racismo ou migração. Separe dois livros adequados à faixa etária. Leia em etapas. Ao final de cada sessão, proponha três perguntas abertas, sem certo ou errado. Convide a criança a escrever um bilhete para um personagem. A atividade cria vocabulário emocional, reduz medos e substitui o “não pode” por diálogo informado.


