Uma operação inédita que uniu ciência e sangue frio abre caminho para terapias antes consideradas sonhos distantes para pacientes.
Em Roma, uma equipe coordenou um procedimento de altíssima complexidade para tratar um câncer de pulmão que invadia vasos centrais. O caso coloca em discussão novas fronteiras para cirurgias torácicas oncológicas e reacende a esperança de controle de doença localmente avançada.
Como foi a cirurgia
O Hospital Universitário Sant’Andrea, ligado à Universidade Sapienza de Roma, realizou em 17 de julho de 2025 o que especialistas classificam como o primeiro transplante de artéria pulmonar em um ser humano. A intervenção combinou a retirada completa do pulmão esquerdo com a substituição da artéria comprometida por um segmento biológico.
A equipe, liderada por Erino Angelo Rendina e composta por cirurgiões torácicos e cardíacos, anestesistas, perfusionistas e enfermagem especializada, iniciou o procedimento ao meio-dia. O ato cirúrgico durou 4 horas e 30 minutos, com suporte de circulação extracorpórea para manter o fluxo sanguíneo e a oxigenação enquanto os vasos eram reconstruídos.
Primeiro transplante de artéria pulmonar em humano, associado à retirada do pulmão esquerdo, com enxerto biológico de 5 cm.
Antes do centro cirúrgico, a paciente passou por quimioterapia e imunoterapia com drogas de alvo molecular. O objetivo foi reduzir o volume tumoral e permitir margens de segurança. Na mesa, os cirurgiões removeram a artéria doente, o pulmão esquerdo e um segmento da traqueia, reconstruindo as vias aéreas logo em seguida.
A artéria foi substituída por um enxerto humano criopreservado de cerca de 5 centímetros, proveniente do Banco de Tecidos de Barcelona. O uso foi autorizado pelo Centro Nacional de Transplantes da Itália. O ajuste fino da tensão do vaso reconstruído exigiu precisão milimétrica para respeitar a elasticidade natural e impedir dobras ou estreitamentos.
Por que enxerto humano e não material sintético
Válvulas e vasos artificiais funcionam bem em certas regiões. Na artéria pulmonar, o desafio é o fluxo pulsátil de alta complacência, que exige um comportamento elástico difícil de reproduzir com polímeros disponíveis hoje.
- Elasticidade: o tecido humano acompanha a expansão e o recuo do batimento cardíaco.
- Resistência: fibras naturais suportam pressão sem perder forma.
- Compatibilidade: menor inflamação e menor tendência a trombose em comparação a alguns materiais sintéticos.
- Adaptação anatômica: o enxerto pode ser moldado com mais fidelidade à anatomia do paciente.
Um ponto crítico foi restabelecer a tensão adequada do enxerto, evitando tração excessiva. Isso mantém o diâmetro e assegura um caminho livre para o sangue que sai do coração em direção ao pulmão remanescente.
Recuperação e acompanhamento
A paciente acordou poucas horas após a cirurgia, respirando e conversando. Um derrame pleural pequeno foi drenado ainda durante a internação. Exames de imagem mostraram a nova artéria pérvia, com fluxo preservado. Em quatro semanas, ela recebeu alta e retomou atividades cotidianas com orientação de fisioterapia respiratória.
Sem necessidade de imunossupressores ou anticoagulantes no caso reportado, graças ao uso de tecido humano criopreservado com baixa antigenicidade.
O plano de seguimento inclui tomografias periódicas para avaliar o enxerto, exames oncológicos para controle do câncer e testes de função pulmonar. A vigilância precoce ajuda a identificar estenoses, trombos ou alterações hemodinâmicas.
Para quem isso pode fazer diferença
Nem todos os tumores de pulmão que infiltram a artéria pulmonar podem receber essa abordagem. A seleção rigorosa é a regra para equilibrar riscos e benefícios.
- Indicação provável: tumor localizado com invasão vascular, boa resposta a terapia sistêmica e ausência de metástases distantes.
- Condições necessárias: equipe experiente em cirurgia torácica complexa e acesso a circulação extracorpórea e banco de tecidos.
- Limitações: disponibilidade de enxertos, custo hospitalar, tempo de isquemia e controle oncológico de longo prazo.
- Alternativas: ressecções em manga de artéria, reconstruções com aut enxertos venosos e, quando não há opção, tratamento paliativo.
Riscos e cuidados
Trata-se de uma operação extensa. Complicações podem incluir sangramento, infecção, estenose do enxerto, trombose, fístulas aéreas e insuficiência respiratória. A decisão terapêutica envolve discussão em tumor board e consentimento informado detalhado.
| Opção | Vantagens | Desafios |
|---|---|---|
| Enxerto biológico humano | Melhor elasticidade, menor reatividade | Disponibilidade, conservação, custo |
| Prótese sintética | Pronta entrega, padronização | Elasticidade inferior, risco trombótico |
| Autoenxerto venoso | Fonte própria do paciente | Calibre e comprimento limitados |
O que muda para pacientes e médicos no Brasil
O marco italiano acende um sinal verde para centros de alta complexidade no Brasil avaliarem protocolos. A adoção depende de diretrizes nacionais, integração com o sistema de transplantes, logística de bancos de tecidos e treinamento multiprofissional. Anvisa e o Sistema Nacional de Transplantes precisarão definir fluxo para acesso a enxertos vasculares criopreservados.
Hospitais com experiência em ECMO e circulação extracorpórea largam na frente. A formação de linhas de cuidado oncológico com cirurgia torácica e cardiologia em sincronia será decisiva para selecionar casos e reduzir complicações.
Quando oncologia, cirurgia e perfusão trabalham no mesmo compasso, tumores antes inoperáveis ganham alternativas reais de controle local.
Passo a passo clínico simplificado
- Avaliação inicial com tomografia, PET-CT e broncoscopia para mapear extensão tumoral.
- Indução com quimio e imunoterapia para reduzir a infiltração vascular.
- Planejamento baseado em imagem 3D e estratégia de reconstrução.
- Cirurgia com suporte de circulação extracorpórea e monitorização hemodinâmica contínua.
- Reconstrução da via aérea e da artéria com enxerto compatível e calibragem cuidadosa.
- Uti com desmame ventilatório precoce e fisioterapia respiratória intensiva.
Perguntas que você pode levar à consulta
- Meu caso tem potencial de ressecção com reconstrução vascular?
- Que resposta ao tratamento sistêmico preciso atingir antes da cirurgia?
- O hospital tem acesso a banco de tecidos e equipe de perfusão dedicada?
- Quais exames e prazos de acompanhamento serão necessários após a alta?
- Quais sinais de alerta devo observar em casa?
Horizonte de pesquisa e próximos passos
Pesquisas futuras devem medir durabilidade do enxerto, taxas de reintervenção e sobrevida oncológica. Estudos multicêntricos podem comparar diferentes materiais e técnicas de reconstrução em artéria pulmonar. A padronização de protocolos de preservação e transporte de tecidos tende a reduzir variabilidade de resultados.
Para pacientes brasileiros, a mensagem prática é a seguinte: casos avançados podem se beneficiar de reavaliação em centros de referência após resposta à terapia sistêmica. Programas de reabilitação pulmonar, cessação do tabagismo e controle de comorbidades aumentam a chance de boa recuperação quando a cirurgia se torna viável.


