Um par gasto numa capa de 1972 virou símbolo de escolhas que ainda nos cobram coragem e coerência hoje.
Com a morte de Lô Borges neste domingo (2), a imagem dos tênis sujos voltou à cena como farol estético e ético. O gesto que moldou sua música também provoca quem ouve: onde termina o hit e começa a vida vivida na arte.
Adeus a lô borges e a imagem que venceu o mercado
O “disco do tênis”, lançado em 1972, definiu um rumo. A capa fotografada por Cafi, com calçados surrados, virou um manifesto. Ali não havia luxo, havia estrada. Jovem, mineiro e já parceiro de Milton Nascimento, Lô assumiu que a liberdade não cabia em prateleira. Definiu um método simples: caminhar, errar, refazer, compor.
Imagem-síntese: tênis sujos como manifesto de independência estética e recusa ao imediatismo.
Essa postura atravessou décadas. Não mirava a música de ocasião, mirava a música que resiste. Em vez de perseguir fórmulas, ele afinou linguagem, harmonia e melodia para tocar fundo. O resultado entrou na memória afetiva e nos repertórios domésticos, de rodas de violão a palcos de teatro.
Da capa do tênis ao clássico que não quis ser hit
A trilha que emergiu naquele começo se desdobrou em canções gravadas por vozes centrais da MPB. Nana Caymmi, Elis Regina, João Bosco e o próprio Milton levaram temas de Lô a novos públicos. Tom Jobim se encantou a ponto de registrar uma versão de Trem Azul com letras em inglês de sua autoria, rara exceção no catálogo do maestro.
A recusa à agenda industrial cobrou preço. O segundo disco solo só chegou em 1979. A longa espera não sugere silêncio criativo, e sim escolha. Lô preferiu guardar a coerência ao invés de acelerar o passo por pressão. O mercado olhou menos. A obra ganhou profundidade.
Por que artistas de gerações distintas seguiram o rastro
Quando o século virou, novas bandas e compositores buscaram a matriz harmônica e o lirismo cortante de Lô. Skank e Nando Reis aproximaram o compositor de um público mais jovem. Dois Rios, parceria puxada por Samuel Rosa em 2003, levou seu idioma a rádios de massa sem diluir a essência. Milton, ao regravar Resposta, confirmou a ponte entre eras.
Princípio orientador: não sobreviver da música, mas permitir que a música sobreviva dentro de quem a cria.
A obra recente que reacendeu parcerias e risco
Os últimos anos foram densos. Lô retomou a conversa com o irmão Márcio Borges e com Nelson Angelo, companheiros do Clube da Esquina. Com Makely Ka, concebeu Dínamo (2020), um trabalho de escrita compartilhada e mira afiada. Pablo Castro capitaneou a turnê que reabriu o “disco do tênis” ao palco e rendeu o registro ao vivo Tênis + Clube (2018). Em 2024, veio Tobogã, com fotografia de Cafi em diálogo com a sua história. Em 2025, lançou Céu de Giz, em parceria com Zeca Baleiro, e abriu o álbum com uma profissão de fé no instinto, sem ceder ao ruído do tempo.
Essa cadência recente, praticamente um álbum por ano, não sinaliza pressa. Revela método: compor, gravar, lançar, conversar na estrada com plateias pequenas e médias, depurar repertório, voltar ao estúdio. O ciclo manteve viva a matéria-prima da canção e localizou Lô no mapa atual da música brasileira sem nostalgia.
Sete passos para ouvir lô borges hoje
- Comece pelo “disco do tênis” (1972) em ordem, sem pular faixas, para captar a unidade do gesto.
- Compare duas gravações de Trem Azul: uma mais intimista e outra com arranjo amplo.
- Visite o Clube da Esquina e note diferenças de escrita quando Lô assume a voz principal.
- Ouça Dois Rios e identifique o diálogo entre pop de rádio e harmonia mineira.
- Pegue Dínamo e perceba como a parceria com Makely Ka atualiza o vocabulário.
- Em Céu de Giz, foque na faixa de abertura e observe a coerência do tema “seguir o coração”.
- Feche com um show ao vivo disponível nas plataformas para sentir o pulso de banda.
Dois tênis, muitas encruzilhadas: escolhas no streaming
O símbolo dos calçados gastos conversa com o ouvinte conectado. Playlists tendem a valorizar a superfície. O algoritmo induz horizontes curtos. Lô apostou na verticalidade do clássico. Essa escolha desafia a lógica do pulo de faixa. Discos como o de 1972 funcionam como romance, não como feed. Basta uma escuta atenta para notar a amarração de motivos melódicos e as modulações inesperadas que pedem continuidade.
Para quem cria, o recado é direto: perseguir o som que faz sentido antes de perseguir número. Para quem ouve, a pista é simples: abrir tempo para o álbum inteiro, nem que seja uma vez por semana. Liberdade, aqui, significa decidir como você usa seu próprio ouvido.
Marcos da trajetória em discos
| Ano | Álbum | Observação |
|---|---|---|
| 1972 | Lô Borges (“disco do tênis”) | Afirma a ética da estrada; par com o Clube da Esquina |
| 1979 | Segundo solo | Lançado após hiato; reafirma independência criativa |
| 2018 | Tênis + Clube (ao vivo) | Turnê com banda de nova geração; repertório seminal |
| 2020 | Dínamo | Parceria com Makely Ka; escrita compartilhada |
| 2024 | Tobogã | Foto de Cafi em diálogo com memórias visuais |
| 2025 | Céu de Giz | Com Zeca Baleiro; abre com profissão de fé no instinto |
O impacto sobre quem ficou: ouvintes, músicos e cenas locais
O mineiro que preferiu a canção ao ruído da moda aproximou gerações. Músicos jovens ganharam caminhos harmônicos para fugir do óbvio. Produtores revisitaram microfones, timbres e modos de tocar ao vivo. Cenas locais, em Belo Horizonte e fora dela, adotaram a ideia de banda de amigos que aprende na estrada. Essa rede sustenta festivais menores, casas de show de bairro e selos independentes que hoje fazem a ponte com o digital.
Para o público, o legado se mede por rituais íntimos. Um vinil tocando inteiro num domingo. Um violão com amigos repetindo progressões que não cansam. Uma letra que recusa fatalismo sem apagar a dureza do país. Há beleza, há ruído, há contradição. O clássico nasce dessa fricção, não de conforto.
Informações úteis para ampliar a escuta
- Diferença entre hit e clássico: o hit nasce para circular rápido; o clássico sustenta releituras e novos arranjos.
- Risco e vantagem: arriscar linguagem reduz alcance imediato, mas rende vida longa ao repertório.
- Atividade prática: escolha um disco, ouça com encarte e anote mudanças de tom e motivos que retornam.
- Caminho de entrada: uma sequência de 40 minutos com quatro faixas de épocas diferentes cria contexto sem dispersar.
Mote de estrada: seguir adiante com o ouvido aberto, mesmo quando o atalho promete resultados fáceis.
Se você compõe, teste uma regra simples por uma semana: escreva uma melodia por dia, sem pensar em estatística. Depois, toque tudo com uma pessoa de confiança e ajuste o que respira melhor ao vivo. Se você só ouve, proponha um encontro quinzenal para ouvir um álbum inteiro com amigos. Conversas assim sustentam memória musical, fortalecem cenas e desafiam a pressa.
Lô Borges partiu, mas a pergunta ficou em cada um de nós: que estrada seus próprios tênis têm coragem de encarar quando o algoritmo tenta escolher por você.


