Fila longa, promessa de preço baixo e pressa por atendimento. Milhões apostam num cartão que não é plano, mas parece.
O Superior Tribunal de Justiça confirmou que a ANS deve regular os cartões de desconto em saúde. A decisão pressiona um mercado em expansão e antecipa uma disputa que pode chegar ao Supremo.
O que o STJ decidiu
A Segunda Turma do STJ publicou o acórdão que obriga a ANS a fiscalizar empresas que vendem cartões de desconto. Os ministros entenderam que, ao organizar uma rede de clínicas, laboratórios e farmácias, essas empresas criam uma relação de consumo típica da saúde suplementar, ainda que não assumam risco financeiro como um plano.
Para o tribunal, a promessa de acesso a uma rede credenciada torna o consumidor vulnerável e justifica a atuação da ANS.
O relator, ministro Herman Benjamin, apontou que a atividade deve observar a Lei 9.656/98 e o Código de Defesa do Consumidor. O acórdão equipara os cartões a modelos de coparticipação no que toca à proteção do usuário, já que o pagamento é feito diretamente ao prestador.
A ANS recorreu e alegou falta de base legal para enquadrar esses produtos. A corte rejeitou os argumentos. O caso tende a seguir para o STF, que pode firmar a última palavra sobre a competência regulatória.
Como funciona o mercado de cartões de desconto
Cartões de desconto cobram adesão ou mensalidade. Em troca, oferecem preços reduzidos para consultas, exames, procedimentos simples e medicamentos em redes conveniadas. Não há cobertura de despesas. O usuário paga pelo serviço com desconto no ato.
Estima-se que cerca de 60 milhões de brasileiros, sobretudo das classes C e D, já usem ou tenham usado esses cartões. Clínicas populares, redes de diagnóstico e plataformas digitais puxam a oferta. O crescimento nasce da dificuldade de acesso a consultas pelo SUS e do preço dos planos tradicionais.
Levantamento do Instituto Locomotiva indica que 72% dos brasileiros de renda média e baixa já pagaram ou conhecem quem pagou particular por falta de atendimento no SUS.
Quem usa e por quê
- Famílias que não conseguem pagar um plano de saúde integral.
- Pacientes que buscam consultas rápidas em clínica popular.
- Trabalhadores informais e autônomos sem benefícios corporativos.
- Idosos fora de planos por causa de reajustes altos.
Argumentos em disputa
A ANS sustenta que cartões não compõem plano de saúde, pois não assumem risco assistencial. Empresas do setor afirmam que não existe “regulação por similaridade” sem previsão legal clara. Defendem que novas exigências podem encarecer o produto e reduzir a oferta para a baixa renda.
Entidades de defesa do consumidor e pesquisadores de políticas públicas veem lacunas de transparência, publicidade confusa e promessas que soam como cobertura contratual. A decisão do STJ é celebrada como passo para coibir práticas enganosas.
Publicidade que confunde cartão com plano induz erro, desloca a escolha do consumidor e fragiliza a comparação de preço e qualidade.
O que pode mudar para você
Se a regulação avançar, o consumidor tende a ganhar previsibilidade. O setor deve se adaptar a regras de informação, conduta comercial e supervisão de redes credenciadas.
- Contratos mais claros sobre o que o cartão oferece e o que não oferece.
- Proibição de slogans que sugiram “cobertura” ou “plano” quando não houver risco assumido.
- Lista pública e atualizada de prestadores credenciados, com preços de referência.
- Canal de reclamações com prazos para resposta e mediação de conflitos.
- Auditoria de qualidade mínima para clínicas e laboratórios credenciados.
- Penalidades para propaganda enganosa e suspensão de venda quando houver infração grave.
Cartão, plano ou consulta avulsa: diferenças práticas
| Produto | Como paga | Risco financeiro | Rede | Para quem faz sentido |
|---|---|---|---|---|
| Cartão de desconto | Mensalidade/adesão + preço reduzido por ato | Usuário paga o procedimento | Credenciada pela empresa | Quem usa pouco e quer preço previsível na consulta |
| Plano de saúde | Mensalidade; pode ter coparticipação | Operadora assume risco | Regulada pela ANS | Quem precisa de cobertura ampla e proteção contra eventos caros |
| Particular avulso | Pagamento integral por ato | Usuário arca com tudo | Qualquer prestador que aceite direto | Consumo muito esporádico ou serviço muito específico |
Impactos esperados no mercado
Empresas que já adotam boas práticas podem se beneficiar, ao ganhar credibilidade e reduzir assimetria de informação. Modelos agressivos de venda, que prometem “cobertura” ou “reembolso”, devem perder espaço. Clínicas populares podem rever contratos e sinalização de preços.
Haverá custos de adaptação, sobretudo com compliance, auditoria de rede e sistemas de informação. Parte desses custos pode chegar ao consumidor na forma de mensalidades um pouco mais altas. Por outro lado, regras claras tendem a reduzir litígios e cancelamentos por frustração de expectativa.
Desafios para a ANS
A agência ganha dever de regular um universo com milhões de usuários e milhares de prestadores. A capacidade técnica e o quadro de pessoal ficam no centro do debate. A prioridade deve concentrar esforços em normas essenciais e fiscalização baseada em risco.
Sem reforço de equipe e tecnologia, a regulação corre o risco de virar letra morta no papel.
Agenda regulatória possível
- Definição do que é “cartão de desconto” e lista de condutas proibidas.
- Padrão mínimo de contrato, com sumário destacando limites e preços.
- Cadastro nacional das empresas, com trilhas de auditoria e indicadores.
- Regra de descredenciamento e transparência de reajustes de mensalidade.
O que esperar do STF
O Supremo deve avaliar a competência regulatória e eventuais limites à intervenção do Judiciário sobre atos técnico-administrativos. Um entendimento favorável à ANS consolidará a fiscalização e reduzirá disputas repetitivas em instâncias inferiores.
Como avaliar sua adesão hoje
Antes de assinar, compare a mensalidade do cartão com os preços da clínica popular mais próxima. Some quantas consultas e exames você costuma fazer ao ano. Verifique a rede credenciada e confirme se o profissional atende nas datas que você precisa.
- Se você usa 2 a 3 consultas por ano, um cartão barato pode compensar.
- Se você faz tratamentos contínuos, um plano regulado tende a proteger melhor contra gastos altos.
- Se você só precisa de uma consulta pontual, a opção avulsa pode sair mais barata.
Simulação rápida
Imagine uma família que faz 3 consultas e 2 exames simples por ano. Um cartão cobra R$ 25 mensais e oferece consultas a R$ 60 (em vez de R$ 150). Com o cartão, o gasto anual seria R$ 300 de mensalidade + R$ 180 em consultas + R$ 120 em exames com desconto. Total: R$ 600. No particular, o total seria R$ 450 em consultas + R$ 300 em exames = R$ 750. A economia existe, mas depende do uso real e da rede.
Riscos e sinais de alerta para o consumidor
- Promessas de “cobertura total” ou “sem fila” sem detalhamento de rede e preço.
- Ausência de contrato ou impossibilidade de cancelar em até 7 dias na venda a distância.
- Rede reduzida, sem médicos de referência na sua cidade ou sem horários disponíveis.
- Venda casada com crédito, seguros ou assinaturas não solicitadas.
Transparência, preço claro por procedimento e rede verificável protegem seu bolso e evitam surpresas.
Se você já tem um cartão, guarde comprovantes, tire print da rede disponível e registre protocolos de atendimento. Em caso de propaganda enganosa, busque canais de defesa do consumidor e a ouvidoria da empresa. A futura regulação deve ampliar caminhos de reparação e punição a abusos.


