Uma peça de madeira, feita no século 18, atravessou casas e cidades até virar o centro de uma batalha judicial.
O caso envolve um busto relicário atribuído a Aleijadinho, disputado por herdeiras e um colecionador e reivindicado pela Igreja em Minas Gerais. A decisão mais recente, tomada em Brasília, reacende perguntas sobre o que pode — e o que não pode — ser comprado quando o bem integra o patrimônio cultural.
Decisão do STJ reacende debate sobre patrimônio
O Superior Tribunal de Justiça negou recursos apresentados por três herdeiras e por um colecionador e manteve a devolução do Busto de São Boaventura à Arquidiocese de Mariana, em Minas Gerais. A relatoria ficou com a ministra Maria Thereza de Assis Moura, que confirmou o entendimento firmado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais em 2017.
Segundo os autos, Mariangela de Vasconcellos Marino, Cláudia Marino Semeraro e Mary Angélica Marino Bicudo venderam a peça em 2005 a Antônio Ricardo Beira. O Ministério Público de Minas Gerais abriu a ação em 2008, depois de localizar o busto na residência do comprador em São Paulo.
Perícia da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais atestou a autoria de Aleijadinho e o vínculo da obra ao acervo da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto. O busto integra um conjunto de quatro relicários de santos franciscanos: São Boaventura, São Duns Scot, Santo Antônio e São Tomás de Aquino.
Perícia técnica confirmou: o busto pertence ao conjunto de relicários esculpidos por Aleijadinho para a Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto.
Como o busto saiu da igreja e foi parar em São Paulo
A trajetória da peça ajuda a entender o conflito. O busto deixou o ambiente religioso e passou a circular no mercado de arte durante o século 20, criando uma cadeia de posses que, agora, a Justiça considera inválida desde o princípio.
- 1936: Vicente Raccioppi, do Instituto Histórico de Ouro Preto, declara ter comprado a peça de um antiquário de Mariana, Paulino Batista dos Santos.
- 1972: Raccioppi vende o busto a Paulo Arena.
- Até 1983: a obra permanece com Luiz Antônio Silveira Arena.
- 1983: venda a João Marino, marido de Mary Angélica de Vasconcellos Marino e pai das outras duas recorrentes.
- 2005: as herdeiras vendem o busto a Antônio Ricardo Beira.
- 2008: após localização da peça em São Paulo, o MPMG ajuíza a ação para restituição.
Tombamento e mão-morta: por que a venda foi declarada nula
O TJMG destacou que a obra está protegida pelo tombamento do conjunto da Igreja de São Francisco de Assis. Ouro Preto foi alçada a Monumento Nacional em 1933, com formalização do tombamento da igreja em 1938. Em 1985, o Conselho Consultivo do IPHAN incluiu todo o acervo da igreja na proteção, e o município de Ouro Preto instaurou procedimento específico sobre o relicário.
Além do tombamento, pesou o regime jurídico histórico de mão-morta, vigente do período colonial até a República. Bens eclesiásticos, sob o Padroado, tinham restrição de alienação sem autorização estatal. O TJMG entendeu que essa limitação foi mantida por normas posteriores, como o Decreto 119-A de 1890, retomadas em 2002 pelo Decreto 4.496.
Ninguém transmite o que não tem: a primeira venda, em 1936, é nula; as seguintes caem com ela.
Com base nessas premissas, o tribunal estadual considerou que a primeira alienação violou o regime aplicável a bens eclesiásticos e, por consequência, todas as transações posteriores carecem de validade jurídica.
Sem usucapião e com responsabilidade solidária
As herdeiras alegaram posse prolongada, boa-fé e existência de recibos; o comprador sustentou aquisição legítima com base em título de compra e venda. A Justiça afastou as alegações. Bens que integram o patrimônio histórico-cultural são inalienáveis, fora do comércio e não podem ser adquiridos por usucapião.
Outro ponto levantado foi a necessidade de incluir todos que participaram da cadeia de negócios desde 1936. O STJ rejeitou a tese. Pela sua jurisprudência, a conservação de bem tombado impõe responsabilidade solidária, permitindo ao autor da ação demandar contra responsáveis isoladamente, sem litisconsórcio obrigatório.
O que disseram os recorrentes — e por que não colou
Antônio Ricardo Beira invocou ofensa ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa. Também defendeu que a Ordem Terceira de São Francisco de Assis teria caráter privado e autonomia financeira em relação à Coroa Portuguesa, o que afastaria o regime do Padroado. As herdeiras sustentaram linha semelhante.
O STJ não acolheu os argumentos. Os ministros apontaram que reverter as conclusões do TJMG exigiria reexaminar provas — impedimento expresso pela Súmula 7 do tribunal — e enfrentar normas históricas e infralegais fora do escopo do recurso especial. Com isso, manteve-se o entendimento de que a obra integra patrimônio histórico-cultural sob tutela pública.
| Ponto do debate | Entendimento do STJ |
|---|---|
| Tombamento do acervo da igreja | Proteção vigente; bem fora do comércio jurídico privado |
| Usucapião de bem cultural | Impossível, ainda que haja boa-fé e posse prolongada |
| Regime de mão-morta | Restrições de alienação alcançam o relicário; alienações posteriores são nulas |
| Litisconsórcio necessário | Desnecessário; responsabilidade é solidária |
| Reanálise de provas | Vedada pela Súmula 7; perícia e fatos permanecem |
O que muda para colecionadores, antiquários e herdeiros
Casos assim mostram que documentos de compra e posse prolongada não bastam quando há indício de tombamento, origem eclesiástica ou vínculo a acervo público. O risco de perda do bem e de litígios caros é real, mesmo para quem agiu com cuidado e guarda recibos.
- Verifique em bases municipais, estaduais e federais se há tombamento ou processo de proteção aberto.
- Peça certidões e pareceres técnicos sobre autoria e procedência; peritos independentes ajudam a mapear riscos.
- Em bens de irmandades e ordens religiosas, confirme se houve autorização válida para alienação e quem é o legítimo detentor.
- Considere acordos de comodato e empréstimo museológico, em vez de compra, quando houver dúvidas sobre domínio.
Boa-fé reduz conflitos, mas não regulariza a propriedade de bem cultural protegido.
Glossário rápido para entender o caso
Tombamento: procedimento administrativo que reconhece o valor cultural de um bem e estabelece proteção legal, inclusive restrições de alienação e de uso.
Usucapião: forma de aquisição de propriedade pela posse continuada; não se aplica a bens de valor histórico e cultural protegidos.
Mão-morta: regime histórico que limitava a alienação de bens de instituições religiosas sem anuência estatal, especialmente no período do Padroado.
Por que a perícia pesou tanto
O laudo do Laboratório de Ciência da Conservação da UFMG confirmou técnica, materiais e características compatíveis com a produção de Aleijadinho entre 1791 e 1812. Essa convergência, somada à identificação do conjunto de quatro bustos relicários da mesma igreja, reforçou a tese de que a obra não se desvinculou do acervo original.
Como o STJ não reavalia provas em recurso especial, a conclusão técnica permaneceu como base do julgamento. A peça volta à esfera pública eclesiástica, sob guarda da Arquidiocese de Mariana, fechando um ciclo de quase um século de circulação privada.
Quer avaliar o risco de uma obra antiga?
Uma prática útil é montar uma linha do tempo de posse com documentos contemporâneos a cada transferência e pedir uma busca formal em órgãos de patrimônio. Se surgir qualquer referência a acervo religioso, municipal ou federal, trate a obra como bem de alto risco jurídico. Negociações podem migrar para formatos seguros, como depósitos, exposições com termo de guarda e cooperação com museus.
Para herdeiros, a cautela inclui revisar inventários antigos, checar se peças vinculadas a igrejas foram registradas corretamente e, se necessário, propor regularização. O custo de uma perícia e de uma consulta jurídica preventiva costuma ser menor do que o de uma disputa que pode acabar com a restituição do bem e com a nulidade dos negócios celebrados ao longo de décadas.


