Moradores relatam barulho, caminhões e clarões na mata. A paisagem mudou rápido, enquanto órgãos públicos e Justiça correm atrás.
Imagens recentes e autos de fiscalização revelam intervenções aceleradas num terreno sensível de Nova Lima. O caso mexe com vizinhos, autoridades ambientais e quem depende da água que nasce ali perto.
Disputa cercada por obras e cercas
Um lote de aproximadamente 20 mil m², registrado em nome da Vale, virou foco de um litígio que combina posse, licenças e impactos ambientais. O espaço recebeu cercamento, muro, barracão e padrão de energia. As estruturas foram instaladas por um morador que afirma ocupar o local há 13 anos e ingressou na Justiça com pedido de usucapião rural, alegando posse mansa e contínua.
A Prefeitura de Nova Lima embargou a intervenção. A gestão municipal multou a proprietária formal do terreno por construção sem autorização. Ao mesmo tempo, um alvará de funcionamento concedido à Rod Anel Logística — empresa ligada à família do ocupante — permitiu atividades de transporte de cargas no endereço, por cinco anos, na categoria de baixo risco econômico. O documento, no entanto, não substitui licenças ambientais, urbanísticas e sanitárias.
Sem licença ambiental, supressão de vegetação, terraplanagem e edificações podem configurar crime e gerar embargo imediato.
Quem pede a posse e por quê
O requerente sustenta que realiza “limpezas pontuais” e nega desmatamento ou localização em área de conservação. A ação de usucapião busca manter a posse e regularizar a situação do imóvel. A família reforça que nunca sofreu oposição direta e que o alvará seguiu trâmites municipais.
A Vale afirma adotar medidas para coibir invasões e diz que o terreno fica no limite entre a Estação Ecológica dos Fechos e o parque municipal homônimo, negando que se trate de área de conservação integral.
Alvará de funcionamento não autoriza supressão de vegetação, abertura de vias internas ou deposição de entulho.
Onde fica e por que preocupa
Mapas oficiais apontam que quase toda a gleba se insere no perímetro da Estação Ecológica dos Fechos, unidade de proteção integral sob gestão do Instituto Estadual de Florestas e da Copasa. Essa área protege nascentes que abastecem cerca de 280 mil moradores de Belo Horizonte e Nova Lima.
Imagens de satélite indicam vegetação íntegra no início de 2024. No fim do mesmo ano, grandes clareiras já apareciam. Fiscalizações recentes registraram entrada e saída de caminhões e descarte de resíduos, transformando partes do entorno em bota-fora. A prefeitura instalou câmeras e aplicou multas, enquanto coletivos ambientais cobram ação mais contundente para conter danos e recuperar trechos degradados.
Clareiras ampliadas perto de captações elevam risco de assoreamento, perda de biodiversidade e custo de tratamento da água.
Cronologia do caso
| Data | Fato | Impacto |
|---|---|---|
| Início de 2024 | Vegetação nativa permanece preservada nas imagens | Área sob equilíbrio ecológico |
| Fim de 2024 | Clareiras surgem e metade da área aparece aberta | Alteração do uso do solo e alerta de degradação |
| 2025 | Obra embargada; multa por construção sem autorização | Atividades paralisadas e obrigação de regularização |
| 2025 | Concessão de alvará à Rod Anel Logística | Autorização de funcionamento sem licença ambiental |
| 2025 | Ministério Público abre inquérito civil | Investigação de irregularidades e omissões |
O que dizem os envolvidos
- Secretaria municipal de Meio Ambiente: confirma ausência de licenciamento, embargo e projeto para recuperar áreas degradadas no parque.
- Família do ocupante: alega 13 anos de posse pacífica e nega desmatamento, dizendo ter feito apenas limpezas superficiais.
- Rod Anel Logística: afirma legalidade do alvará e tramitação pelas secretarias competentes.
- Vale: sustenta que a área está no limite dos Fechos e que adota medidas contra invasões.
- Prefeitura: diz que o alvará decorre de normas de liberdade econômica, sem dispensar licenças ambientais; promete revogar se houver irregularidade.
- Secretaria estadual de Meio Ambiente: relata fiscalização da Polícia Militar de Meio Ambiente e análise de documentos.
O que está em jogo para você
Os Fechos integram um mosaico estratégico de proteção hídrica na Região Metropolitana. Intervenções em encostas e ciliares, ainda que pontuais, podem desencadear erosão, assoreamento e custo extra para operar estações de tratamento. Em períodos de estiagem, qualquer degradação no entorno de nascentes pesa no volume e na qualidade da água que chega às torneiras de bairros de Nova Lima e da capital.
Além da água, o bota-fora atrai pragas, agrava riscos de incêndio e pressiona a fauna. O passivo ambiental tende a se acumular quando a terra vira depósito irregular. Recuperar esse dano exige tempo, dinheiro público e responsabilização de quem causou o impacto.
Como o Ministério Público pode agir
O inquérito civil permite solicitar perícias, recomendar suspensão de atividades e firmar termos de ajustamento de conduta. Se a apuração comprovar danos ou ilegalidades, o órgão pode ajuizar ação civil pública com pedidos de demolição, recuperação da área e indenização por dano ambiental. Órgãos ambientais podem somar autos de infração e apreensões.
Usucapião, licenciamento e unidades de conservação
Usucapião rural exige posse contínua, pacífica e com finalidade produtiva, por prazos que variam conforme a modalidade. Bens públicos não se usucapem. Se o imóvel está em área privada, a discussão passa pelo cumprimento de requisitos legais e pela inexistência de oposição. Quando a área se sobrepõe a unidade de proteção integral, o regime é restritivo: uso direto e atividades econômicas não se compatibilizam com a finalidade de conservação.
Para qualquer intervenção com supressão de vegetação ou terraplanagem, o empreendedor precisa de licenciamento ambiental. A Lei de Crimes Ambientais tipifica a destruição de floresta nativa e obras sem licença. O alvará municipal de funcionamento apenas reconhece a atividade econômica; ele não autoriza alterar solo, cortar árvores ou lançar resíduos.
Licenciamento ambiental, autorização de supressão e anuência do gestor da unidade são exigências distintas e cumulativas.
O que pode acontecer agora
- Reintegração de posse e retirada de estruturas, caso a Justiça negue o usucapião.
- Revogação do alvará municipal, se confirmada incompatibilidade ambiental e urbanística.
- Plano de recuperação de área degradada com prazos e metas monitoradas.
- Aplicação de multas, responsabilização civil e criminal dos envolvidos.
- Regularização limitada, caso estudos indiquem inexistência de sobreposição com unidade de conservação e viabilidade ambiental — hipótese que exige licenças prévias.
Como o morador pode agir de forma segura
Quem vive perto do local pode registrar fotos e vídeos com data e hora, anotar placas de veículos e acionar a fiscalização municipal e a polícia ambiental. Relatos consistentes aceleram providências e evitam novos danos. Ao encaminhar denúncias, descreva pontos de referência e riscos imediatos, como fogo, entulho em curso d’água ou máquinas em operação.
280 mil pessoas dependem da água protegida pelos Fechos. Preservar a mata é proteger a sua torneira.


