O Atlântico cobra paciência, cadência e uma cabeça fria. Quem encara a rotina do mar aprende a negociar com o imprevisto.
Dois franceses decidiram medir forças com essa rotina. Eles deixaram Mindelo, em Cabo Verde, e apontaram para Guadalupe, no Caribe. O plano exige disciplina diária, turnos longos na água e atenção total às correntes. Em jogo, além de números impressionantes, vai uma mensagem direta para quem ainda aprende sobre o mundo: as crianças.
Uma partida discreta, um objetivo gigantesco
Chloe e Matthieu Witvoet, de 29 e 31 anos, entraram no mar com um alvo claro. Eles pretendem atravessar o Atlântico a nado, em revezamento, por cerca de três meses. O percurso estimado soma quase 4.000 quilômetros, do arquipélago de Cabo Verde até Guadalupe, já no Caribe.
O projeto coloca a dupla em movimento constante. Um entra na água, o outro sai. O barco de apoio acompanha, serve de base para alimentação e descanso, e vira abrigo quando a noite chega e o corpo pede pausa.
Partida em Mindelo, Cabo Verde. Chegada prevista em Guadalupe, Caribe. Distância aproximada: 4.000 km.
Como funciona o revezamento no meio do oceano
O barco leva quatro pessoas de apoio. Uma enfermeira integra a tripulação e cria protocolos para lidar com dor, cortes, hipotermia e contato com águas-vivas. A operação se organiza em blocos. Cada nadador cumpre turnos longos, volta para o convés, come, hidrata, ajusta o traje e retorna ao mar quando o parceiro conclui sua parte.
| Período | Duração | O que acontece |
|---|---|---|
| Revezamento de nado | Até 6 horas por atleta ao dia | Um entra, o outro descansa e se alimenta |
| Noite | Descanso completo | Barco à deriva, sujeito às correntes |
Alimentação e descanso
Em desafios assim, a ingestão de calorias precisa compensar o gasto de energia. Alimentos de fácil digestão e bebidas com eletrólitos costumam compor as pausas. O sono vem por blocos, e a qualidade varia conforme o balanço do mar. A dupla aprende a ouvir o corpo e a ajustar a intensidade das braçadas ao humor das ondas.
A meta diária depende do vento e da corrente. O relógio tenta mandar. O mar decide.
A corrida por dois recordes
Se a rota se confirmar até o final, a dupla mira dois feitos. O primeiro é o maior revezamento a nado já registrado em mar aberto. O segundo é a mais longa travessia feminina em águas oceânicas, no caso de Chloe.
Essa ambição não surgiu do nada. Eles treinam há anos em travessias progressivas que desafiam resistência e navegação.
De onde vem a experiência
- 2019: travessia do Estreito de Gibraltar, entre Espanha e Marrocos.
- 2020: nado por toda a extensão do Rio Sena, na França.
- 2022: percurso de Marselha a Barcelona, sempre a nado.
O treino recente manteve ritmo de quatro a cinco horas diárias no mar europeu. A rotina fortaleceu ombros, tronco e cabeça. A dupla cita a modalidade como natação de ultramaratona, um território que combina resistência extrema e decisão rápida.
Estimativa de 5 milhões de braçadas até o Caribe, divididas entre os dois atletas em turnos diários.
A tradução pedagógica: 60 mil alunos e um oceano de perguntas
O objetivo vai além dos números. O casal usa a travessia como ferramenta didática para falar de biodiversidade, lixo marinho e mudanças do clima. A ação distribuiu kits educativos a mais de 60.000 estudantes. As turmas debatem o tema e acompanham a posição do barco em tempo real.
O timing conversa com a agenda climática. A poucos dias da COP 30, que ocorrerá em Belém, a proposta ganha mais peso. O mar, muitas vezes invisível no cotidiano urbano, vira pauta de sala de aula. Crianças fazem perguntas diretas, que poucas campanhas conseguem provocar: de onde vem a água limpa? Quem paga a conta do plástico que não some? Como as correntes mexem com o tempo nas cidades?
Se a travessia falhar, a mensagem segue: cuidar do oceano não é opcional para a próxima geração.
Riscos e decisões em tempo real
As correntes no Atlântico deslocam a rota e exigem ajustes finos. O vento muda o desenho das ondas. O sal machuca a pele e cobra atenção à hidratação. O atrito do traje pede proteção nas áreas de maior contato. Dor de ombro é ameaça constante. O frio noturno pode derrubar performance.
Clima e maré
O período favorece ventos constantes, mas nem sempre estáveis. Janelas de tempo mais manso alternam com mar corrido. A equipe consulta previsões, interpreta o céu e decide quando alongar ou encurtar um turno.
O corpo no limite
Seis horas de água por dia, durante meses, desgastam. O corpo responde com inflamação. A prevenção foca mobilidade, fortalecimento e técnica de braçada. A cabeça sustenta a paciência nos dias em que o GPS parece não andar. A enfermeira acompanha sinais de alerta, do cansaço profundo à hipotermia leve, e prepara intervenções simples antes que pequenos incômodos virem lesões.
Contexto histórico das travessias do Atlântico
O Atlântico já recebeu outras tentativas audaciosas. Em 1998, o francês Benoit Lecomte cruzou dos Estados Unidos à França com apoio de um barco e levou 72 dias. Em 2000, dois italianos partiram das Canárias à Martinica em automóveis transformados em jangadas, praticamente à deriva. O oceano aceita criatividade, desde que alguém tenha coragem e logística para insistir.
Fatos rápidos para você acompanhar a travessia
- Trajeto alvo: Mindelo (Cabo Verde) → Guadalupe (Caribe).
- Tempo estimado: cerca de três meses, com descanso noturno a bordo.
- Revezamento: turnos alternados, com até 6 horas de nado por atleta ao dia.
- Suporte: barco com quatro tripulantes e acompanhamento de enfermagem.
- Volume de esforço: cerca de 5 milhões de braçadas até a chegada.
- Propósito paralelo: educação ambiental para mais de 60 mil estudantes.
Para quem se inspira e quer entender a modalidade
A natação de ultramaratona reúne travessias longas, quase sempre em mar aberto. A dinâmica difere da piscina. A orientação depende de pontos no horizonte, do barco e do sol. O ritmo oscila a cada série de ondas. O corpo aprende a lidar com a flutuação e com mudanças súbitas de temperatura.
Uma simulação simples ajuda a dimensionar a tarefa. Em condições favoráveis, um amador costuma manter entre 2 e 3 km/h no mar. Em travessias muito longas, correntes e cansaço criam variações maiores. A dupla francesa reduz incertezas com revezamento, suporte técnico e planejamento de pausas.
Cuidados básicos para nados de longa distância
- Avaliação médica antes de aumentar volume e intensidade.
- Treino progressivo, com foco em técnica e fortalecimento do manguito rotador.
- Planejamento de hidratação e alimentação de fácil digestão.
- Traje adequado para temperatura e proteção contra água-viva.
- Equipe de apoio com comunicação clara e protocolos de segurança.
Quem assiste ao mapa da travessia vê linhas tortas e desvios. O traçado não denuncia fraqueza. Ele mostra respeito ao oceano. A dupla negocia cada quilômetro, um turno por vez, até que a faixa de areia de Guadalupe apareça no horizonte.


