Um detalhe discreto em cenas marcantes, um réptil simbólico e uma disputa antiga. Quem presta atenção sente o chão tremer.
As aparições da tartaruga em It (A Coisa) não são mero capricho visual. Elas apontam para uma arquitetura mítica gigantesca e para a lógica que sustenta o confronto entre o Clube dos Perdedores e Pennywise. Ao entender essa peça, você lê os filmes e o livro de Stephen King por outro ângulo, com novas pistas sobre o medo, a fé e a força da união.
O que a tartaruga representa para a mitologia de Stephen King
Nos livros, a tartaruga tem nome e função: Maturin. Ele habita o chamado Macroverso, uma camada de realidade anterior à nossa, da qual também veio A Coisa. Nessa tradição, Maturin é uma entidade benevolente, antiga e quase sempre adormecida. Seu gesto criador dá origem à realidade; sua postura simboliza ordem, equilíbrio e continuidade da vida.
Maturin encarna criação, ordem e vida; A Coisa encarna caos, consumo e medo. A disputa em Derry espelha uma fricção primordial.
Essa leitura reorganiza o tabuleiro. Derry não é apenas palco de um palhaço assassino. É um ponto de contato de forças arquetípicas, onde crianças, crenças e imaginação viram ferramentas concretas de combate.
Quem é Maturin e onde ele age
Maturin não surge como herói de capa e espada. Ele orienta à distância. Seu poder não se manifesta com raios e explosões, mas como amparo à fé e ao vínculo entre os Perdedores. Quando Bill Denbrough atravessa, no livro, uma jornada mental conhecida como Ritual de Chüd, ele encontra Maturin e recebe um princípio simples, porém decisivo: coragem compartilhada e crença infantil podem ferir o predador que se alimenta de medo.
- Nome: Maturin, a tartaruga criadora.
- Camada de existência: Macroverso, anterior à nossa realidade.
- Função simbólica: ordem, criação, continuidade.
- Modo de ação: conselhos, intuição, impulso de fé, nunca intervenção direta.
Por que Maturin e A Coisa se chocam
Maturin e A Coisa existem como polos opostos. Ele organiza; ela devora. Ele sustenta; ela corrompe. Esse antagonismo molda o comportamento de Pennywise: a criatura precisa do pânico para se alimentar e usar formas que a vítima reconhece. Quando a crença das crianças muda, seus truques perdem eficiência.
| Aspecto | Maturin | A Coisa (Pennywise) |
|---|---|---|
| Princípio | Criação e ordem | Caos e consumo |
| Energia-chave | Fé, união, imaginação construtiva | Medo, isolamento, manipulação |
| Relação com Derry | Inspira resistência | Enraíza ciclos de violência |
| Intervenção | Indireta, por insights | Direta, por terror físico e psíquico |
Como a tartaruga guia o Clube dos Perdedores no livro
O grupo não recebe um milagre pronto. Recebe um método. O Ritual de Chüd, tratado no cinema de forma simplificada, no livro é uma batalha de vontades em que Bill entende que a crença modela a forma de Pennywise. Se eles acreditam que o monstro tem limites, esses limites aparecem. Se eles aceitam a união como regra, o medo perde tração.
A fé dos Perdedores funciona como uma tecnologia mística: quando compartilhada, ela reconfigura o jogo e impõe regras ao predador.
Esse detalhe reinterpreta cada cena icônica. O lobisomem, a múmia, a aranha, os dentes que se multiplicam: são máscaras viáveis apenas se as vítimas concedem poder a elas. Com Maturin como farol, as máscaras racham.
O que mudou nos filmes de Andy Muschietti
Na adaptação recente, a mitologia foi enxugada para priorizar emoções humanas: amizade, lealdade, coragem. A função orientadora de Maturin migra para as próprias crianças. A crença não tem tutoria divina explícita; nasce do vínculo entre eles. A tartaruga aparece como aceno: no LEGO de Georgie, na pedreira, em aquários e, mais recentemente, em referências que a série prequel It: Bem-vindos a Derry promete multiplicar.
Por que quase não vemos a tartaruga no cinema
Há razões práticas e narrativas para esse recuo simbólico.
- Ritmo: explicar o Macroverso quebraria a cadência do terror urbano.
- Acesso: camadas metafísicas exigem tempo de tela e linguagem visual específica.
- Foco: a jornada dos Perdedores ganha centralidade emocional quando a solução nasce deles.
- Tom: um deus-tartaruga pode soar dissonante sem a construção gradual do livro.
Mesmo assim, as pistas estão lá para quem gosta de caçar detalhes. Tartarugas perto de água, brinquedos, desenhos em paredes de Derry: os sinais atuam como memória residual de Maturin, lembrando que a resistência não começou em 1988 e não termina com um golpe final.
Conexões maiores na teia de histórias de King
Leitores atentos reconhecem ecos em A Torre Negra, onde figuras animais guardiãs reforçam a ideia de que forças arquetípicas sustentam a realidade. A tartaruga aparece associada a proteção e equilíbrio, enquanto entidades predatórias alinham-se a ruína e entropia. Essa costura oferece um mapa de leitura: obras diferentes conversam por símbolos, não apenas por personagens.
Para quem acompanha as adaptações, isso abre possibilidades. Uma série prequel pode tratar o medo coletivo de Derry como campo de batalha filosófico, sem precisar nomear cada entidade. Cenários, grafites e lendas locais bastam para sugerir a mão de Maturin. Já para quem prefere o caminho literal, edições comentadas do livro de It ajudam a identificar termos como Macroverso e Ritual de Chüd, enriquecendo a releitura.
Como isso afeta você, fã brasileiro
Rever os filmes com esse filtro produz novas leituras e debates. Você pode caçar tartarugas em cena, notar mudanças de luz quando a união dos Perdedores cresce e testar uma hipótese: momentos de coragem coletiva reduzem o repertório de truques de Pennywise? A comparação rende conversa entre gerações que viram o palhaço em épocas diferentes.
Informações complementares para ampliar a análise
Termos para guardar: Macroverso descreve a camada anterior à nossa realidade; Ritual de Chüd define um confronto de mentes em que fé e linguagem desenham limites. A ideia-chave é a crença performativa: quando um grupo acredita junto, esse ato altera a regra do jogo. Em It, isso vira arma.
Atividade sugerida: reassista às sequências da pedreira, da escola e do esgoto procurando presenças de tartarugas, água e objetos circulares. Anote quando a trilha sonora suaviza ou endurece conforme o grupo se une. Depois, compare com capítulos do livro dedicados a Bill e à intuição que ele recebe. O contraste ajuda a entender por que Maturin, mesmo quase invisível, continua movendo peças.
Riscos e vantagens de simplificar a mitologia no cinema: a narrativa ganha fluidez e apelo global, mas perde camadas metafísicas que tornam o pavor mais profundo. Para o público, fica a escolha: abraçar a leitura direta dos filmes ou assumir o jogo simbólico que o livro propõe e que as tartarugas, silenciosamente, anunciam a cada aparição.


