Pés descalços, cheiro de jardim e azul que some com o tempo. A sala vira um campo de teste para a sua atenção.
Na Pina Contemporânea, em São Paulo, Juliana dos Santos transforma a vida breve das flores em matéria de arte e convivência. A artista cria um corredor azul feito com pigmentos de Clitoria ternatea e convida o público a caminhar, observar e aceitar que cor também morre.
Um corredor azul que pede pés descalços
O visitante encontra um tapete de algodão tingido que ocupa boa parte da sala. Para entrar, precisa tirar os sapatos. O chão azul não é só cenário. Ele existe para treinar o olhar, desacelerar o passo e ajustar a respiração. Quem se apressa, perde.
O azul nasce de uma planta popular em jardins e chás, a Clitoria ternatea. Juliana macera, seca e pulveriza pétalas para criar pó. Esse pó voa sobre o tecido e se deposita em linhas irregulares. Não há repetição. Cada sopro desenha outra borda.
Dez quilos de pétalas viram cor em 20 metros de algodão. A obra pede corpo, tempo e cuidado de quem passa.
Participação do público e obra coletiva
O corredor ganhou força com colaboração. Visitantes e funcionários participaram do processo de soprar pigmento sobre o tecido. A artista prefere conduzir o gesto e repartir a autoria, algo raro em instalações marcadas por controle rígido.
Quem percorre o espaço percebe manchas que se adensam e se expandem, como marés. O caminho cria intimidade e memórias porque envolve toque, pele, pequenos desequilíbrios.
A cor que muda diante dos seus olhos
Nas paredes, painéis em alturas distintas sugerem um horizonte. Embaixo, tons quentes lembram fim de tarde. No alto, marcas quase cinzas desafiam a retina. Entre eles, azuis e amarelos se cruzam. Nada fica parado. O tempo trabalha nos pigmentos vegetais, que enfrentam ar, luz e variações de temperatura.
O azul vegetal desbota. O desbote não é defeito. Ele é parte do enredo, como rugas que narram a passagem dos dias.
Clitoria ternatea: do chá ao ateliê
A Clitoria ternatea tem uso culinário e medicinal. No ateliê de Juliana, ela vira pigmento instável. A artista aceita a instabilidade como método. Em vez de pincel firme, água e vento. Em vez de verniz, permeabilidade. Isso exige cuidado na montagem e na conservação e, ao mesmo tempo, amplia o senso de risco. O público entende, na prática, que a beleza pode pedir manutenção e que certas obras mudam de tom com o tempo.
Pesquisa, mercado e a escolha do efêmero
Juliana define sua trajetória como pesquisa contínua. Ela confronta a lógica comercial que ainda valoriza estabilidade absoluta. Pigmentos industriais oferecem saturação e previsibilidade. Os vegetais entregam vibração sutil e vida curta. A artista prefere a fricção com o real a um acabamento imutável.
Essa escolha reabre perguntas sobre colecionismo, museologia e direito à mudança. Como registrar a obra sem aprisioná-la? Como calcular seguro para algo que se transforma? A exposição vira laboratório para curadores, conservadores e público, que observam o material respirar.
Quando o gesto substitui o pincel
Em séries sobre papel, Juliana chacoalha folhas molhadas para testar a dispersão da aquarela. Ela busca limites do corpo do pigmento, não do seu. A forma nasce quando água e gravidade impõem decisões. A artista acompanha, ajusta e para antes do excesso. O resultado são contornos orgânicos que parecem crescer sozinhos.
Camadas de matéria: flores, minerais e memória
Uma tela de algodão junta pó de pétalas e fragmentos ressecados com aquarelas de origem mineral, como quionita e ametista. A justaposição articula tempos diferentes: vegetal recente e mineral antigo. O encontro desloca hierarquias. Nenhum elemento manda. Todos negociam espaço.
- Clitoria ternatea: pigmento azul que desbota com a luz e o ar.
- Minerais como quionita e ametista: aquarelas de estabilidade maior.
- Água e vento: instrumentos de dispersão e desenho.
- Algodão cru: suporte poroso que recebe, respira e mancha.
Raça, desejo e pauta artística
Juliana, mulher negra, recusa a ideia de função única para artistas negros. Ela reivindica o direito de falar de flores, tempo, cor e cuidado, sem ceder a gavetas temáticas impostas por expectativas externas. A exposição, então, também propõe liberdade de assunto. Não há separação rígida entre política e poética quando o corpo assume o espaço.
Liberdade artística passa por poder tratar de temas delicados, cotidianos e íntimos sem autorização prévia.
Serviço
| Exposição | Temporã, de Juliana dos Santos |
| Onde | Pina Contemporânea, av. Tiradentes, 273, São Paulo |
| Quando | Até 8 de fevereiro de 2026; quarta a segunda, das 10h às 18h |
| Ingresso | R$ 30; gratuidade aos sábados |
Dicas para a visita
- Vá com calçado fácil de tirar. O percurso pede pés descalços.
- Reserve tempo para observar mudanças de cor sob luz diferente.
- Chegue cedo em dias gratuitos para evitar filas e lotação.
- Se tiver alergia, avalie o contato com pó vegetal e tecidos.
Contexto: por que o azul importa
O azul carrega uma história complexa. Por séculos, artistas dependeram de pigmentos caros, como lápis-lazúli moído. Com o surgimento de versões sintéticas, a cor ganhou popularidade, mas perdeu parte do mistério material. No trabalho de Juliana, o azul volta a ter corpo instável. Ele ora brilha, ora perde fôlego. Isso cria profundidade e ajuda a pensar distância, atmosfera e memória.
O que é pigmento “fugidio” e como cuidar
Pigmentos fugidios mudam com exposição à luz, umidade e calor. Obras que usam esses materiais pedem baixa luminosidade, proteção contra poeira e controle térmico. Se você coleciona ou guarda trabalhos com cor vegetal, priorize molduras com vidro filtrante, evite paredes que recebem sol direto e faça rodízio de exposição. A mudança ainda virá, só que de modo mais lento e previsível.
Para ampliar a visita
Leve uma pergunta simples: que cor o tempo tira primeiro? Compare painéis, observe bordas, anote impressões. Volte em outro dia e confira se o azul te parece o mesmo. Atenção às áreas próximas ao teto e ao chão. A variação de temperatura nessas faixas costuma acelerar o desbote.
Se você trabalha com educação, use a exposição para exercícios rápidos: medir temperaturas em pontos distintos da sala; testar percepção cromática com cartões de cinza; registrar, em fotos sem flash, as áreas que mais mudam. Isso aproxima ciência, arte e cuidado cotidiano. E deixa claro que a beleza também se mede em durações, não só em cores vivas.


