Praias, estuários e manguezais do país recebem uma mobilização rara, que coloca binóculos e celulares nas mãos de vizinhos.
O fim de semana marca uma corrente de ciência cidadã que se espalha pela costa brasileira e alcança áreas úmidas do interior. A proposta é simples: observar, anotar e compartilhar dados sobre aves limícolas, grupo que revela a saúde de nossos ambientes costeiros e dulcícolas.
Quem está por trás do mutirão
Dois ornitólogos de Peruíbe, no litoral sul de São Paulo, coordenam no Brasil a participação na maior contagem global de aves limícolas. Bruno Lima e Karina Ávila mobilizam grupos, orientam novatos e articulam os registros com a rede internacional Wader Conservation World Watch, iniciativa da ONG Wader Quest. A ação integra voluntários que, com passos na areia e olhos atentos nas marés, mapeiam espécies que dependem do lodo para sobreviver.
De 1 a 2 de novembro, qualquer pessoa pode registrar limícolas e somar dados a um esforço global de ciência cidadã.
O que são aves limícolas
Limícolas são aves que se alimentam de pequenos invertebrados no lodo, termo derivado do latim limus. Elas possuem pernas longas, bicos adaptados a sondar o substrato e hábitos ligados às marés. O grupo abrange maçaricos, batuíras, narcejas, pernilongos e jaçanãs, entre outros. Esses animais usam o Brasil como área de descanso, alimentação e, em alguns casos, reprodução.
Uma parte significativa chega do Ártico após percorrer milhares de quilômetros. Outras são visitantes regionais que circulam por lagoas costeiras, salinas e arrozais. Quando encontram praias ocupadas por carros, cães soltos e lixo, perdem o pouco tempo disponível entre marés para repor energia.
Carros nas praias, cães soltos e resíduos reduzem áreas de pouso e alimentação; cada minuto de descanso perdido compromete a migração.
Números que mostram o tamanho da rede
Na edição de 2024, 445 voluntários de 54 países registraram 139 espécies. O Brasil aparece entre os destaques de engajamento, com forte presença na Baixada Santista e pontos de contagem distribuídos ao longo de todo o litoral. A expansão de participantes fortalece séries históricas, vitais para análises sobre declínio populacional e mudanças no uso do habitat.
Como você participa
Passo a passo para contribuir
- Observe limícolas onde estiver: praias, estuários, mangues, lagoas, salinas e margens de rios.
- Anote espécie (ou características), quantidade estimada, local exato, data, horário e condições de maré.
- Registre no eBird e compartilhe com a equipe WaderQuestTeam, ou envie a lista para a coordenação nacional do mutirão.
- Inclua fotos quando possível; imagens ajudam na validação e na identificação de indivíduos marcados.
- Convide vizinhos, familiares e grupos de observação. Saídas em equipe aumentam a cobertura e reduzem erros.
O que levar e quando sair
- Binóculo, caderneta ou app de anotações, água, protetor solar e calçado para lama.
- Prefira horários próximos à maré enchente, quando aves se concentram em áreas de descanso.
- Mantenha distância para não levantar os bandos; aproximações repetidas geram gasto energético desnecessário.
Ameaças que pressionam as limícolas
O avanço de construções sobre restingas e manguezais fragmenta habitats. A circulação de veículos na areia espanta bandos e compacta o sedimento. Cães soltos quebram o descanso de aves exaustas. Lixo atrai predadores e altera a qualidade do ambiente. Em áreas interiores, drenagem de banhados e obras em margens reduzem a oferta de alimento.
| Ameaça | Impacto imediato |
|---|---|
| Carros na praia | Espanta bandos, destrói ninhos camuflados e compacta o lodo |
| Cães sem guia | Perseguição, dispersão e perda de tempo de alimentação |
| Lixo e poluição | Ingestão de plástico, contaminação e atração de predadores |
| Iluminação e drones | Desorientação e estresse em áreas de descanso |
Espécies para ficar de olho
Entre as mais comentadas pelos observadores estão as batuíras, que correm em zigue-zague na linha d’água, e os maçaricos, que sondam o lodo com bicos de diferentes comprimentos. O maçarico-rasteirinho aparece como um símbolo da causa por sua vulnerabilidade. O pernilongo-de-costas-pretas chama atenção pelas pernas rosadas e voo elegante. O quero-quero, comum em gramados e praias abertas, funciona como “alarme” do grupo.
Onde procurar cada uma
- Batuíra-de-coleira: praias arenosas e bancos de areia expostos na maré baixa.
- Maçarico-de-papo-vermelho: áreas lamacentas em estuários ricos em microinvertebrados.
- Narceja: campos alagados, margens de lagoas e arrozais.
- Jaçanã: lagoas com vegetação flutuante, onde caminha sobre folhas.
- Pernilongo: salinas, lagoas rasas e bordas de manguezais.
Por que a contagem importa para você
Os dados produzidos pelo mutirão servem de base para planos de conservação, como os do ICMBio, e ajudam a definir áreas a proteger, períodos de restrição a veículos e rotas turísticas menos impactantes. Prefeituras podem ajustar regras de uso de faixa de areia e sinalizar áreas sensíveis. Quanto maior a série anual de registros, maior a precisão para detectar quedas populacionais e priorizar ações locais.
Boas práticas na praia e no mangue
Leve seu cão na guia, caminhe abaixo da linha de algas depositadas pela maré, evite sobrevoos com drones e não alimente aves. Em pontos de descanso, reduza passadas e mantenha pelo menos 50 metros de distância dos bandos. Quem fotografa deve usar o zoom em vez de aproximação física.
Dicas rápidas de identificação
- Bico: fino e reto sugere maçaricos do gênero Calidris; curvo para cima pode indicar maçarico-de-bico-virado.
- Pernas: amarelas costumam aparecer em maçaricos-pernilongos; longas e rosadas remetem ao pernilongo.
- Comportamento: corridinhas e paradas bruscas são típicas das batuíras; sondagem constante do lodo é típica dos maçaricos.
- Marcas: coleira no peito diferencia batuíra-de-coleira de espécies semelhantes.
Como grupos locais ampliam o alcance
As saídas organizadas por Bruno e Karina espalham pontos de contagem por Peruíbe, Itanhaém, Mongaguá e Santos. A estratégia distribui voluntários entre praias, desembocaduras de rios e costões com poças de maré. Grupos experientes acolhem iniciantes, compartilham guias de campo e ajudam a evitar duplicidade de registros entre locais próximos.
Quer ir além do fim de semana
Vale manter a rotina de observação ao longo do verão, quando fluxos migratórios atingem o pico. Anotar bandos em diferentes marés revela áreas de alimentação e de descanso. Quem vive longe do litoral pode monitorar açudes e lagoas urbanas; limícolas usam esses pontos durante frentes frias ou períodos de estiagem.
Informações complementares que ajudam na sua participação
Fixe metas simples: 30 minutos por ponto, duas passagens visuais e uma contagem fotográfica para confirmar números maiores. Use o modo de contagem por estimativa em bandos grandes e registre marcas incomuns, como anilhas coloridas. Se aparecer uma espécie rara, descreva detalhes do bico, das pernas e do padrão de asas em voo. Em dias de vento forte, procure encostas protegidas e bordas de mangue; os bandos costumam se abrigar nesses locais.
Quem quiser contribuir com educação ambiental pode montar placas caseiras provisórias alertando banhistas sobre áreas sensíveis, conversar com quiosques para orientar clientes e combinar faixas horárias sem circulação de cães. Pequenas escolhas cotidianas reduzem perturbações e mantêm espaço para que as limícolas concluam viagens que ligam o Polo Norte às praias do seu bairro.


